Peer Gynt em fuga
É a estreia do novo Teatro Aberto. "Peer Gynt", o épico de Ibsen representado pela primeira vez em Portugal, é uma grande produção: 3h30 de espectáculo com orquestra ao vivo, música composta especialmente para a peça, mais de 20 actores. João Pedro Vaz, 27 anos, é Peer Gynt, um homem em fuga.
Pense-se numa cebola e nas suas várias camadas. Num homem, no final da vida, a descascar capa sobre capa sobre capa. Imagine-se o centro: não há nada. Sentado, arrancando a capa-arqueólogo, a capa-profeta, a capa-imperador dos loucos, a capa-homem naufragado, a capa... Peer Gynt (João Pedro Vaz) descobre que o seu epitáfio poderia ser: "Aqui jaz ninguém". É uma das cenas emblemáticas da peça, e uma das que mais gosta João Pedro Vaz, o intérprete da personagem central do poema épico do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906). Diz o actor: "Simboliza uma procura de identidade, de um centro, que não é tão auto-centrado em nós próprios, está também nos outros. É interessante que um homem tão rico em imagens só tão tardiamente tenha percebido isso". Gynt descobre também tarde demais "que a possibilidade de redenção está no afecto e no aceitarmo-nos e aos outros com problemas, defeitos". Tarde demais porque esse homem "instável, que muda de convicções muito rapidamente", centrado em si próprio, que segue, sem saber, a máxima do 'basta-te a ti próprio'", passou a vida a fugir de si próprio. "Há uma grande contemporaneidade na peça, até na ideia de uma auto-suficiência cada vez maior".Personalidade dividida, sempre quis ser diferente dos outros, a sua vontade individual entrou em conflito com a sociedade. Mas no fim da vida, como lhe diz a personagem de um fotógrafo, percebe que tem a "alma desfocada". E que não é mais extraordinário do que os outros.Caleidoscópio. Primeiro: a longa obra de Ibsen - que Vera San Payo Lemos traduziu e adaptou, e que estreia o novo Teatro Aberto, em Lisboa, com mais de 20 actores e uma orquestra de 13 músicos (dirigida por João Paulo Santos, alternando com Henrique Piloto e Paulo Lourenço) - não foi escrita para teatro. É um poema épico, escrito em Itália em 1876, que percorre a vida de um homem desde a juventude à velhice. É uma viagem "à volta do mundo", no tempo e no espaço. E, tal como acontece em todos os espectáculos que a põem em cena, também esta versão foi reduzida: retirou-se uma cena, cortou-se dentro das cenas. Para se ter uma ideia: Peter Stein encenou-a em seis horas; Patrice Chéreau em cinco; esta tem três horas e meia.João Lourenço optou ainda por um palco que se alarga e comprime, abre-se para dar lugar a acções num plano mais baixo. Há barcos, há grandes estruturas que aparecem e desaparecem, e mais não se conta. Encenou a grande variedade de cenas para ilustrar o percurso do Peer Gynt através da vida e do mundo. Explica Vera San Payo Lemos, co-autora com Lourenço da tradução e responsável pela adaptação dramatúrgica: "O próprio Ibsen propôs cortes que o teatro onde se estreou a peça não observou - por exemplo, propôs que o IV acto, a viagem de Peer Gynt pelo mundo, fosse cortada". Vera tem dificuldade em comparar a sua versão com outras: "As encenações são diferentes devido aos cortes, mas todas sublinham a grande epopeia. Era mais importante dar a multiplicidade das situações e das reflexões que essas situações sugerem, como um caleidoscópio. As situações que se passam na cabeça dele são também reflexões; a peça vive desse contraste entre uma viagem interior e exterior".Centralidade esmagadora. João Pedro Vaz está em palco quase ininterruptamente ao longo de três horas e meia. "É um texto de uma centralidade esmagadora, sobretudo em termos de percurso psicológico. O facto de a personagem fazer essa travessia no tempo e no espaço faz com que as pessoas passem por ele e desapareçam, excepto duas mulheres: a mãe [Irene Cruz] e Solveig [Catarina Furtado]." Mas será que mesmo essas duas mulheres o tocam? "Há uma grande fuga à realidade da personagem, uma inabilidade para lidar com objectos reais. Mesmo nas relações, é muito complicado: dá um passo em frente e três atrás. Há algo mal resolvido, nada se pacifica, está sempre a fugir". Para o actor (galardoado com o Prémio Revelação do IPAE no ano passado, trabalhou com Ricardo Pais, José Wallenstein, Rogério de Carvalho, Paulo Castro ou Nuno Carinhas, e pertence à companhia portuense Assédio) este não é o seu primeiro grande papel. Mas é o primeiro desta linha de grande produção e com esta responsabilidade. Conta que o encenador - que é também "director de actores" e com quem colabora pela primeira vez - tinha já uma ideia clara do que queria: um Peer Gynt "pululante, quase exagerado, que ao envelhecer perde dinamismo". Para Ibsen, a expressão física de um actor tinha que encaixar no texto e na personagem, era importante que o intérprete soubesse que papel desempenhava na acção como um todo. Que abordagem fez o actor a Peer Gynt? "É uma personagem de grande jogo, tem imensas possibilidades. É extremamente enérgico, vai jogando com as circunstâncias. Até que o cerco se aperta e ele começa a perder a possibilidade de jogar, tem que encontrar alternativas. Em termos de interpretaçãotambém é assim". Uma energia que começa no auge e vai abrandando, de forma a sentir-se a passagem do tempo. "Se fosse um actor mais velho a fazer este papel, tinha que acrescentar coisas à personagem no início. Aqui é o contrário: vai-se retirando". Tira-se energia, mas também a ironia. A abordagem nunca poderia ser a da absoluta sinceridade, de estabilidade emocional, uma vez que é a isso que Peer Gynt foge. Mantém-se as projecções para além das suas capacidades. De qualquer forma, é sempre sobre o jogo que João Pedro Vaz trabalha: "As personagens não são só motivações, há coisas mais interessantes. Gosto do jogar o texto, de encontrar o trabalho nos ritmos, na fisicalidade, ter vibração no corpo e na voz". O mais complicado, diz o actor de 27 anos, "é dar o peso de uma vida". "Não partilho a ideia de que as memórias tenham que ser dadas no trabalho, mas a experiência é importante. Há coisas que não vivi, percebo-as do ponto de vista racional mas não as tenho no corpo. Foi um grande desafio". Drama moderno. "Peer Gynt" é um texto que, diz o historiador britânico Ronald Gaskell, "inaugura o drama da mente moderna". "Se o Surrealismo e o Expressionismo no teatro têm uma fonte, a fonte é sem dúvida 'Peer Gynt'".Para Vera San Payo Lemos as grandes linhas de modernidade desta obra são "a grande mistura entre uma acção que se passa de facto e outra que se passa na mente". Diz: "A psicanálise estava longe de começar e já o Ibsen expunha os sonhos de um homem. Isso é extremamente moderno, esse olhar interior, pôr para fora todo o mundo dos sonhos." Não foi por caso que Freud analisou algumas das personagens criadas pelo norueguês.Moderno, também, pela forma como as cenas começam: "Não têm uma ligação muito explicada, há elipses como é próprio do processo da mente". É "um texto de charneira entre um período em que Ibsen escrevia sobretudo em verso e as outras peças que escreveu depois em prosa. Ele próprio disse: 'Consegui finalmente escrever uma peça em que prescindi dos longos monólogos e dos apartes'."Depois de ler muitas traduções, Vera San Payo Lemos escolheu duas, uma francesa e outra inglesa, publicadas nos anos 90. "Há traduções em prosa e outras em verso, misturámos os dois géneros." Este "Peer Gynt" será publicado pela Relógio d'Água, ainda durante a carreira do espectáculo.