Os trabalhos na ópera de Robert Wilson
Um das mais marcantes óperas da Segunda metade do século XX foi "Einstein on the Beach" de Bob Wilson e Philip Glass. Essa era uma ópera concebida de princípio pelo encenador e o compositor. Mas a experiência deixou fortes marcas em Wilson, que cada vez mais vem encenando óperas. É o caso de uma famosa produção de "Four Saints in Three Acts" de Virgil Thomson, com libreto de Gertrude Stein, que agora se estreia em Portugal.
Poderia haver uma espécie de imagem inicial: Jessye Norman, com um longo vestido e provavelmente também com um turbante. A imagem dela, a mulher ansiosa no "Erwartung" de Schoenberg, mais recentemente transplantada para um projecto, um pouco absurdo" de encenação do ciclo "A Viagem de Inverno" de Schubert. E Jessye está hierática. A imagem recua mais no tempo, podia ser de "Great Day in the Morning", um espectáculo de "espirituais só com a cantora (1982 - Théatre des Champs Elysées, Paris). É a imagem da diva retrabalhada por Robert Wilson, no patamar da ópera. Jessye, uma particular relação do encenador, mas lembram-se também episódicas colaborações com Montserrat Caballé na "Salomé" (!!!), ou com Anne-Sophie van Otter na "Alceste".E, no entanto, ao princípio era o silêncio, eram espaços lineares e as luzes prodigiosas (não há outro encenador em que também assente o termo alemão "lichtregie" para luminotécnica). E os corpos, claro, sempre simultaneamente estatuários, de gestualidade ritualista, mas entre eles estabelecendo movimentos de tantas e às vezes tão prodigiosas coreografias. E assim houve, espectáculo histórico, "O Olhar do Surdo".Mas veio Philip Glass, então ainda importante compositor e houve um marco, nas carreiras de um e de outro, na história da ópera do século XX - "Einstein on the Beach", indissociavelmente obra de um e de outro. Estabelecida a relação com a música, ela passou a constar recorrentemente das cenografias habitadas de Wilson, e vale a pena relembrar como: com "Medée" de Charpentier e simultaneamente "Medea", um "atelier" de Bob Wilson e Gavin Bryars (1984)."Medée" então: foi a primeira vez na demanda de Wilson que surgiu uma obra prévia. "Medée"/"Medea" em que havia uma ópera e a sua reconstrução num trabalho de raiz - como o "Parsifal" de Wagner foi precedido pelo "Parzival" trabalhado com o dramaturgo alemão Tankred Dorst, como "Alceste" de Gluck foi precedida pela encenação da tragédia de Euripides (será que o muito recente "Woyzeck" de Büchner precederá o "Wozzeck" de Alban Berg?). Wilson começou por forjar as palavras no próprio trabalho de concepção do espectáculo mas viria depois a abordar os arquétipos da tragédia grega (atente-se, porque esta referência é importante), antes de se interessar mesmo, à sua peculiar maneira, pelos que são textos de "repertório corrente", de Ibsen, Strindberg ou Tchekov, como tem feito recentemente - e neste trajecto a descoberta da ópera foi decisiva.Wilson, sabemos, é de formação um artista plástico. As encenações são antes do mais a construção de um espaço, a cenografia, os adereços e as luzes (e usualmente também os figurinos, sendo uma excepção notável que em "Four Saints in Three Acts", aqueles últimos sejam da responsabilidade de Francesco Clemente). Nas suas encenações, ao princípio há uma construção arquitectónica, depois aquilo que ele considera ser o mais importante, o "livro visual", uma espécie de "story board" (como esses em que se preparam filmes como uma sucessão de imagens) da decoração. E essa é a matéria mesma do espectáculo e não apenas o envolvimento decorativo, diz. É a linha horizontal, com a qual se cruza uma outra, vertical, "que vai do centro da terra ao cosmos". E então, a matéria pré-existente, a "ópera" (obra) é apenas um "conteúdo" ou "recheio"? Não há que iludir a questão: por diferentes que sejam as peças e as óperas encenadas, o primeiro impacto, e quantas vezes o mais duradouro, é sempre visual. Reverso da medalha: a pregnância do "sistema Wilson" é propriamente reprodutiva, e com raríssimas excepções (a exuberância da "Flauta Mágica" por exemplo) podemos pensar estar sempre a presenciar o desenrolar de um mesmo dispositivo, seja o autor Wagner ou Verdi ou Gluck, seja a ópera "O Castelo do Barba Azul" ou o "Pelléas et Mélisande". Mas considerar apenas esta evidência primeira, seria ignorar a coreografia que o espaço encerra, as quantas vezes extraordinárias marcações, o desenrolar do movimento no espaço, a sua eminente musicalidade, para além dos elementos-fétiches, as cadeiras por exemplo - a que construiu para o "Erwartung" de Schoenberg com Jessye Norman até ficou, qual símbolo de uma era do festival, no átrio da Grossefestspielhaus de Salzburgo. Este método holístico reencontra pressupostos de dramaturgias de óperas. O sentido etimológico de "opera", "obra", com certeza, mas também a aspiração à "gesamtkunstwerk", à "obra de arte total" e mesmo à cosmogenia ("que vai do centro da terra ao cosmos") wagnerianas - e após "Lohengrin " e "Parsifal", Robert Wilson está em vias de concluir a obra maior, "O Anel do Nibelungo" (falta "O Crepúsculo dos Deuses" e após deste, será finalmente apresentado em Maio/Junho na Ópera de Zurique, um primeiro ciclo integral da Tetralogia).Se atendermos agora à importância da "lichtregie", há que considerá-la não apenas como um elemento instrumental mas como um próprio cerne da matéria dos trabalhos de Wilson. E recordar-se-á então como parecia para ele moldado um texto de Gertrude Stein, "Dr. Faust Lights the Light" - foi o primeiro espectáculo seu que vimos em Portugal, nos Encontros Acarte de 1993. E se relembrarmos o estatuto inaugurado com "Medée/Medea", não é difícil atender a que com "Four Saints in Four Acts", que agora se estreia em Portugal, estamos noutro pólo de um diptíco Stein/Wilson, que de resto é um tríptico, tendo pelo meio o encenador construído um outro espectáculo musical sobre textos da escritora, "Saints and Singing".O espectáculo é a famosa produção da Houston Grand Opera, o que deve ser mais do que casual: é o próprio Wilson que gosta de recordar como foi influenciado pelos grandes espaços do Texas, ele que nasceu em Waco. E muito menos casual é este encontro de três personalidades, Gertrude Stein, Virgil Thomson e Bob Wilson, que são todos americanos com formação ou reconhecimento na Europa, e até mais precisamente em Paris.Os anos parisienses de Stein, e da inevitável companheira Alice B. Toklas, são bem conhecidos. É então de chamar a atenção para a importância em compositores americanos dos círculos musicais parisienses dos anos 20/30 (pense-se na influência de Satie em John Cage). No caso de Thomson foi determinante o ensino de Nadia Boulanger (e com certeza afloramentos da "mélodie" serão patentes no recital com canções de Thomson oportunamente programada para antes da ópera, em "Four Saints" sendo evidente o débito para com o "Groupe de Six", Poulenc, Honneger, Milhaud,etc., sob o patrocínio de Jean Cocteau) e as músicas de salão e de opereta então muito prezadas (mas há também reminiscência de cantos religiosos). Perfeitamente tonal é uma música "agradável", que Satie diria de "ameublement"Mas o libreto de Stein é uma de invenção desconcertante. Para não levantar demasiado o véu à surpresa, diga-se apenas que logo o título é um jogo, pois que actos são quatro, além do prólogo, e santos há mais que muitos, mas os principais são só dois, Santa Teresa de Ávila e Santo Inácio de Loyola. Não se pense contudo que é apenas um divertimento iconoclasta. De resto, não entendeu Wilson que o misticismo da obra era por ele abordado na sequência da experiência do "Parsifal" de Wagner?