Nada do que parece é
Luís Fernando Veríssimo é brasileiro, escritor e jornalista. Colunista do "Jornal do Brasil", mais tarde de "O Globo", mantém uma crónica regular na Pública. "Éle Éfe Vê" (LFV, como os brasileiros dizem) é de facto um escritor "multimídia". Tem obras já adaptadas ao teatro, cinema e televisão. Chegou, inclusive, a redigir textos para programas de grande popularidade, como os de Jô Soares ou o TV Pirata (ambos da TV Globo). "As Mentiras que os Homens Contam" (será que mentem, ou omitem, para o bem das mulheres?) é uma reunião de vários textos. São crónicas, pequenas histórias, episódios insólitos e risíveis do dia-a-dia, é o lado farsante da política, da vaidade, da performatividade de qualquer "Homem Que É Homem" (HQEH), mesmo em idade responsável. Luís Fernando Veríssimo esboça uma tipologia da mentira que acontece, ou pode vir a acontecer, a qualquer um, enredando-nos mais cedo ou mais tarde, à medida que a pequena história avança, num abismo irreparável. Por isso, reconhecendo a caricatura de nós mesmos, nervosos, nos rimos esperando talvez escapar a tal enredo quase verosímil e sempre virtual, ansiando, incomodados, outros desfechos."Já deve ter acontecido com você. Você não se está se lembrando dele. Procura freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. (...).- Claro que estou me lembrando de você!. Não quer magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer."Outro clássico irresistível, fascinante - o Falso Entendido."É o cara que não sabe de nada, mas sabe o jargão. E passa por autoridade no assunto. Um refinamento ainda maior da espécie é o tipo que não sabe nem o jargão. Mas inventa.- Ó Matias, você que entende de mercado de capitais...- Nem tanto, nem tanto... (Uma das características do Falso Entendido é a falsa modéstia). (...)Uma variação do Falso Entendido é o sujeito que sempre parece saber mais do que ele pode dizer. (...)- Há muito mais coisa por trás disso do que vocês pensam... Ou então, e esta é mortal: - Não é tão simples assim...Faz-se aquele silêncio que precede as grandes revelações, mas o falso informado não diz nada. Fica subentendido que ele está protegendo as suas fontes em Brasília." LFV escreve o insólito cheio de humor, quase negro. Lembra às vezes Mário-Henrique Leiria. As histórias precipitam-se, a arte muito ágil de as contar, em diálogo, vai ganhando velocidade e relançando cada vez mais o absurdo. O "nonsense" instala-se e já é impossível voltar atrás. Tudo isto a partir de situações ou de casos muito facilmente referencializáveis pelo leitor, daí a sua alegre perversão. O inesperado desvia a rotina, engendra o equívoco, que constitui, por seu turno, o motor destas histórias, que o repetem até ao absurdo, em crescendo, exasperantemente. E nenhum mal-entendido se desfaz - entra irrecuperavelmente em roda livre.Eis uma história exemplar de um homem dos seus quarenta anos, "situada no terreno baixo das pequenas aflições da classe média": um dia, voltando "com fidelidade rotineira a casa", teve um furo. Ao mudar o pneu, escorregou-lhe, pelo óleo e pelo asfalto, a aliança. Augurando a incredulidade da mulher, ele disse sobre o fim que levara a aliança: "Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei. Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois, reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom senso, a venceriam. O mais importante é que você não mentiu para mim." Nada do que parece é. Mas ao mesmo tempo não há fundo de verdade a recuperar, não há o outro lado do que parece. A linguagem põe em cena somente um jogo de espelhos, irónico, um teatro incontrolável de duplos. O humor crítico de Veríssimo é irresistível (poderíamos mesmo imaginar uma requalificação dos "gags" da televisão portuguesa se inspirada nestes textos). Um exemplo que poderia facilmente resvalar para Portugal: "Dez coisas para dizer quando um visitante mal informado perguntar que buraco enorme é esse no chão. (Jamais diga a verdade, que é para um metrô que só ficará pronto quando o Cristo Redentor perder a paciência, botar as mãos na cintura e ameaçar com intervenção. Ele não vai acreditar.)1 - Foi um meteorito. 2 - Há insistentes rumores de guerra com a Argentina e o Governo está construindo abrigos antiaéreos para a população. 3 - Que buraco? 5 - Está bem, está bem, mas e o problema dos negros nos Estados Unidos?"...