Logo no primeiro plano, temos a noção do risco de "Água e Sal": desfocado, a um canto do ecrã, um corpo feminino abre em luz para a profundidade de campo do mar. A imagem indistinta, que depois mergulha nas águas, depressa se define numa impressionante "quase-sósia" da realizadora - Teresa Villaverde desdobra-se em Galatea Ranzi, a auto-exposição resolve-se na figuração de um "alter-ego".
Uma vez lançados os dados, que a dedicatória do genérico final explicita e oculta, em simultâneo, delimita-se o território, um Sul mágico inundado de luz e perverso de sombras, que remete para mais um possível jogo de identificações: tudo nos espaços evocados em "Água e Sal" ecoa "À Flor do Mar" (o grande filme possível sobre um Sul profundo e mítico, na mesma medida em que Bergman capta o Norte), em que Teresa Villaverde aparecia como actriz e corpo. Comparar com a perfeição luminosa do filme assinado por João César Monteiro é um risco que corremos e que "Água e Sal" corre, sempre em seu desfavor.
Depois, a aparição da filha, encarnada pela própria filha da realizadora, constitui mais um passo num jogo das escondidas com o objecto ficcional. Os resquícios de argumento inventariam-se depressa: uma relação esgotada com um marido obsessivo (um Joaquim de Almeida sonâmbulo e algo inexpressivo); a desaparição da filha, não "devolvida" pelo pai na data prevista; um desespero surdo mobilado com pequenos episódios dispersos.
Aqui começam as grandes fragilidades de "Água e Sal". Não se desenvolvem personagens, fragmentam-se olhares e situações. As cenas com Maria de Medeiros, a amiga que aparece do nada, dissolvem-se num sem tempo incómodo; o romance com Miguel Borges, sem estofo para complexidades psicológicas (Jorge Silva Melo resolveu o problema ao dar-lhe apenas energia física em "António, um Rapaz de Lisboa"), resvala para um perigoso decorativismo de brilhos no mar e enquadramentos de velas e mastros. O caso mais extremo passa pelo "desperdício" da presença de Chico Buarque, no papel do amante, sem personagem, apenas uma presença, uma voz fugidia, uns grandes olhos claros, a assunção de um fascínio que não tem função narrativa. Como muitas coisas neste filme desgarrado e frágil, o brasileiro não passa de um sinal, depressa abandonado numa selva de pontos de luz em filme a desconjuntar-se a cada plano.
O mistério dos amores adolescentes, fechados no mistério da casa térrea, e guardados por uma górgona com o rosto e a voz impressionantes de Lúcia Sigalho (que grande actriz de cinema andamos a descobrir), pouco acrescentam a esta filigrana de ficções quase inexistentes. Alexandre Pinto e Ana Moreira, vindos de "Os Mutantes", anterior (e mais sólida) aventura fílmica de Teresa Villaverde, aparecem também como sombras desamparadas de desejo incumprido de personagens, arrastam a sua impotência, ao sabor de um olhar intenso e fatalista. vE, no entanto, tudo o que fragiliza o filme torna-o estranhamente tocante: comovemo-nos perante o que sabemos ser uma exposição autobiográfica da cineasta, corajosa simplificação de um descontrolo posto em imagens. O que era uma fita desconjuntada (e autocomplacente?) acaba por transformar-se em esfacelada experiência de exorcizar o passado recente: "Água e Sal" reúne uma memória artística de lugares assombrados a um grito abafado, apenas revelado em cifra na já citada dedicatória final. A filha, ela-própria assume lugar de identificação e de distância. Tem rosto, mas esconde-se nas iniciais, existe em corpo mas projecta-se em hipótese no desejo que o filme possui de sobre ela abstrair. De tão presente, torna-se ausente, fantasmática.
O autobiográfico apossa-se do filme, mas este já construíra os seus mecanismos de defesa: a quase intriga policial em volta do misterioso filho da personagem de Ana Moreira, a cena em que ela experimenta trajes da protagonista, o modo como o "rapto" da filha desaparece da acção, a própria estrutura em mosaico, partido em pedacinhos, tudo contribui para tornar solar e incandescente esta história de contornos sinistros e personagens sombrias. Como dizia um poeta de canções: "Talvez por ser ao Sol, talvez por ser ao Sul".