Viagem ao Sol

As cores dançam e os vestidos deixam de ser, como defendia o poeta Joseph Delteil, uma coisa lisa e fechada, a partir de agora misturam-se com o movimento dos astros. "Sonia Delaunay - Tecidos Simultâneos", uma exposição a não perder, no Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, até dia 24.

Paris, 1913. Na avenida do Observatório, junto ao famoso restaurante Closeries des Lilas, um pequeno grupo de estudantes, pintores e poetas aguarda entrada no salão de dança Le Bal Bullier. Sonia e Robert Delaunay vão acompanhados do poeta Blaise Cendrars. Nessa noite, de terça-feira, os rostos dos convivas não se fixam nos passos dos bailarinos de "fox-trot" nem nos rodopios dos pares de tangueiros. A robusta pintora russa traz um vestido justo, comprido, feito de retalhos coloridos, o primeiro "vestido simultâneo". A surpresa é tanta que uns suspiram "é um vestido poema", "é uma pintura viva", mas é ainda Cendrars quem o elogia, escrevendo o poema "Sob o vestido ela tem um corpo" e, num rasgo de inspiração, afirma ver nos braços urzes, nos seios ponte de arco-íris, no ventre um disco em movimento. É este raro poema que recebe o visitante na exposição "Sonia Delaunay - Tecidos Simultâneos", patente no Museu Nacional de Soares dos Reis. Até ao final da vida, morreu com 94 anos, esta criadora imparável, há-de beneficiar da constante homenagem dos maiores poetas do seu tempo. Era o espírito da época, cada escritor tinha um pintor, eram iguais, viviam, trabalhavam e dançavam juntos. "Eu tinha Delaunay e Léger, Picasso tinha Max Jacob, Reverdy tinha Braque e Apollinaire tinha toda a gente", recorda mais tarde Cendrars, no jornal "Arts", 1954.Para a jovem Sonia Delaunay (nascida na Ucrânia em 1885), a vida era então uma festa, pintar sem preocupações monetárias, criar pelo simples prazer de levar as suas ideias avante, criar tudo, desde abajures a coletes. O apartamento em Paris era um corrupio de artistas e pintores que se espantavam com a decoração e deixavam nas portas e cortinados novos poemas. Nesta exposição, comissariada pela holandesa Petra Timmer, é possível ver algumas peças de bordados como "Broderie Feuillages", 1909, e a manta de retalhos que Sonia espontaneamente costurou para o berço do seu filho Charles, em 1911, capas de livros e um exemplar de "La Prose du Transsibérian et de la Petite Jehanne de France", 1913, um longo poema de Cendrars, apresentado sob a forma de um livro, de dois metros, dobrado como um harmónio de palavras e cor. O primeiro poema visual simultaneísta. Exemplos de pura abstracção.Para se usufruir plenamente o espaço da exposição, é preciso saber encolher como Alice, de Lewis Carrol, porque o percurso flexível, desenhado pelo pintor António Viana, é como um vestido gigante, cujos padrões geométricos, inspirados nos tecidos originais de Sonia, mostram, não a totalidade da sua obra, mas um núcleo representativo de pinturas, fotografias, desenhos de padrões, blocos de estampagem e seus respectivos tecidos, casacos, gravatas, coletes, vestidos e botões nascidos na Boutique Simultanée, Paris, décadas de 20 e 30, depois da estadia intensa e feliz do casal Delaunay por Vila do Conde e Valença, do Minho. Na autobiografia "Nous Irons Jusqu'au Soleil", 1978, Sonia Delaunay recorda a passagem por Portugal, de 1915 a 1917, como um dos momentos mais felizes da sua vida, porque "pude trabalhar nas melhores condições que um pintor pode sonhar: a luminosidade forte deste país, a animação de rua que me lembrava a Rússia da minha infância, as festas, os mercados, os cantos, as danças populares". Sempre a dança e esse instinto quase atávico da cor, memória longínqua do colorido da Ucrânia, onde Sonia viveu até aos cinco anos, no seio de uma família judia humilde, com o nome de Sarah Stern, e mais tarde a lembrança do fascínio que as elites de São Petersburgo dedicavam à exuberância do folclore russo, inspirador de Diaghilev, na criação dos "Ballets Russes". Se "Le Bal Bullier" foi para a sua pintura o mesmo que o "Moulin Rouge de la Galette" foi para Dégas, Renoir e Lautrec - "o ritmo contínuo e ondulante do tango incitava as minhas cores a movimentarem-se" -, a luminosidade nortenha intensificou-lhe a prática espontânea do simultaneísmo. Mais do que as investigações e leituras de Robert Delaunay sobre a linguagem e propriedades da cor - fascinara-o a obra"De la Loi du Contraste Simultané des Couleurs", 1839, de Eugène Chevreul - era a experiência do olhar quotidiano que revelava a Sonia que cada cor tem vida própria e em conjunto influenciam-se reciprocamente. A cor, como já o tinha entendido Delacroix, Van Gogh, Gauguin, Cézanne, Seurat e outros impressionistas, pode emancipar-se do desenho e dançar no quadro por si mesma. Uma lição apreensível também nas obras do construtivismo russo e no espírito da Bauhaus.Fugindo ao eclodir da Primeira Grande Guerra e ao calor das terras de Espanha, os Delaunay dispõem em Portugal da companhia de Amadeo de Souza-Cardoso e Eduardo Viana, cujas obras mais flagrantemente inspiradas pelo casal - "Canção Popular, a Russa e o Figaro" e "La Petite", ambas de 1916 - estão patentes na exposição. Depois do episódio de acusação de espionagem por parte da polícia portuguesa, convencida de que os círculos órficos eram sinais para o inimigo, os Delaunay regozijam com a encomenda de um painel de azulejos para a fachada da Misericórdia de Valença ("L'Hommage au Donateur"), visível apenas sob a forma de reprodução fotográfica, mas que nunca chegou a ser colocado. A coexistência das reproduções fotográficas - vê-se também nesta exposição uma imagem de "Les Voyages Lointain" e "Portugal", murais pintados para o Pavilhão dos Caminhos-de-Ferro, da Feira Mundial, Paris, 1937 - com inúmeros cartões de desenho e suas respectivas amostras de tecido bem como o mágico livro de registos de produção da Metz & Co e das aguarelas para os figurinos do espectáculo dadaísta "A Noite do Coração Barbudo", que em 1923 levou Aragon e Breton a saltarem para o palco para agredir os actores da peça de Tristan Tzara, são um bom testemunho da vitalidade da "eterna rapariga russa", e da inexistência de desníveis entre os vários campos artísticos a que se dedicou, sobretudo a partir de 1920, quando a Revolução Russa fez desaparecer a generosa mesada que os tios, seus pais adoptivos, lhe enviavam regularmente de São Petersburgo. Com a Boutique Simultanée, que funcionava num quinto andar em Paris e nunca foi loja de rua, ou a marca Tissus Delaunay, Sonia não inventou um estilo, não era uma "couturière" como Chanel mas foi surpreendentemente moderna na agilidade de combinação de formas geométricas simples. Inventou o "point du jour", parecido com o ponto húngaro e testou o "ready-to-use", uma espécie de vestido a montar que na época não teve sucesso. Designer "avant-la-lettre", Sonia perdeu o marido em 1941, lutou pelo seu reconhecimento artístico, assistiu à invasão nazi no Sul de França, converteu-se ao luxo e aos gatos. Nunca perdeu o dom de transformar a fantasia em elegância.

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