Nem de propósito. Há uma semana, Nanni Moretti, a pretexto do seu filme, "O Quarto do Filho", afirmava, em entrevista ao Y: "Não existe palavra para definir um pai que perde o filho". Mas pode-se tentar: violência. Dizer isso é ficar aquém, mas é também uma forma de estabelecer as opções divergentes de dois filmes que se aproximam.
"Vidas Privadas", de Todd Field, chega quase de mansinho, não fosse um daqueles "pequenos filmes" do cinema "independente" americano que todos os anos gera burburinho por altura dos Óscares. Este é, portanto, o "Podes Contar Comigo" (nomeado para os Óscares do ano passado) de 2002. Até porque, à semelhança do filme de Kenneth Lonergan, "Vidas Privadas" foi o vencedor do Festival de Sundance, a montra do cinema independente americano. Até porque estamos de volta ao mesmo cenário: pequena cidade americana, "décor" rústico, os dramas familiares da gente anónima - melhor, da "gente vulgar", para pegar no título da primeira realização de Robert Redford, figura tutelar do cinema independente americano na qualidade de mentor de Sundance. E, finalmente, porque se insere, também, na tradição dos "filmes de interpretação" ("character-driven") dos "seventies" - e se Laura Linney (a actriz de "Podes Contar Comigo") perdeu o Óscar o ano passado, poucos duvidam de que Sissy Spacek é a aposta mais segura de "Vidas Privadas" na cerimónia deste ano (depois de ter conquistado os prémios de interpretação de Sundance, das associações de críticos de cinema de Nova Iorque e Los Angeles, e o Globo de Ouro).
Mas se estes dois filmes andam perto em termos de "tom" - essa quase sussurrada intimidade das "peças de câmara" -, não eram essas as aproximações que se referiam no início. Por coincidência, "Vidas Privadas" chega às salas portuguesas uma semana depois de "O Quarto do Filho", do italiano Nanni Moretti, e a proposta temática dos dois é semelhante: é da dor que se trata em ambos os filmes, desse abalo interior e irreversível que é a perda - a morte - de um filho. E, já agora, não deixa de ser curioso que os dois se configurem a partir desse espaço individual e intimista que é o quarto - no original, o filme de Todd Field intitula-se "In the Bedroom" -, do mesmo modo que ambos convocam o mar para cenário (como nos filmes de Takeshi Kitano, em que o mar é uma espécie de ante-câmara da morte).
Mas é, justamente, no tratamento temático que os filmes seguem caminhos opostos. O de Moretti é, desde o princípio, uma preparação para a morte que se anuncia (mesmo que não soubéssemos dela "a priori", o filme antecipa-a, pela forma como enquadra a relação com o filho) e, a partir daí, segue o percurso (rapidíssimo, diga-se, sem dar tempo às personagens de evoluírem) até à necessária e apaziguadora redenção. É um filme de luz, por mais que Moretti se tenha decidido a revelar o seu lado "sombrio".
Armadilhas.Por sua vez, "Vidas Privadas" leva o seu tempo a desvendar ao que vai - feito espantoso para um filme baseado num conto de cerca de 15 páginas do americano Andre Dubus, "Killings", e aqui adaptado por Rob Festinger e Todd Field (apesar de o realizador afirmar que, a uma segunda leitura, lhe pareceram ser 150 páginas). A única denúncia surge quando os diálogos justificam o título "In the Bedroom": trata-se da expressão usada para explicar o que acontece quando três lagostas são apanhadas na mesma armadilha - alguma há-se acabar por perder uma das pinças. "Vidas Privadas" até abre com uma idílica cena bucólica, inundada de luz: o esplendor na relva de dois amantes. Pista falsa, por assim dizer: a primeira parte do filme assenta, sobretudo, na relação entre Frank (Nick Stahl) e Natalie (Marisa Tomei) - e um terceiro elemento, nada negligenciável, o ex-marido dela -, quando o seu verdadeiro centro reside noutro núcleo de instabilidade, os pais de Frank.
Frank é o "golden boy" americano, tanto quanto se pode ser numa pequena cidade costeira do Estado de Maine: espécie de anjo sem pressentimento da queda, hesitando entre o curso de arquitectura e as "coisas simples da vida", nomeadamente a manutenção da tradição familiar de pesca de lagostas. Filho único, o orgulho dos pais. Um senão: a ligação que mantém com uma mãe solteira. E se aqui surge uma primeira leitura do título original do filme - a mãe dele encara a namorada como a "intrusa" - ela será, pouco depois, transposta para ele, Frank, quando se dá a sua morte. E não fica por aí: é, aliás, apontando mais uma vez o alvo a quem está "a mais", que o filme introduz a sua hipótese de recomposição.
E, a partir daqui, o filme é todo deles, pais de Frank. Matt (excelente interpretação do britânico Tom Wilkinson), o "cúmplice" do filho, e Ruth (confiante actriz do Método que é Sissy Spacek, a verter todas as doses necessárias de aspereza na personagem), a mãe algo obsessiva - é à luz dessas diferenças na relação filial que têm lugar as reacções de um e de outro perante a morte de Frank. Como no filme de Moretti, é a (suposta) exteriorização emocional dela (embora tudo passe pelo acto compulsivo de fumar cigarros atrás de cigarros e pelos serões indiferenciados frente ao écrã de televisão) versus a interiorização dele - que levará a uma cena de confrontação. Nova pista falsa, no entanto, porque é ele, o estóico, o "easy-going" Matt, que perpetua o acto necessário para a recomposição final: a eliminação do elemento que está "a mais" (nesse sobressalto em que o filme ameaça cair no "thriller").
Claro que há um dado novo em relação ao filme de Moretti: a possibilidade de reparação através da vingança. Os pais de Frank terão a sua dose de auto-punição (e, sobretudo, de mútua punição), mas, pelo menos, podem apontar o culpado. Assim é fácil, dirão. Nada mais errado. Trata-se de uma nova pista falsa, de uma vibração impressionista a pedir que olhem mais atentamente para a sua combinação de cores: nem é preciso muito, porque são as trevas - a noite - que dominam no final do filme. Ou seja: não há redenção possível, só o desamparo. Por isso, no plano final, Matt está deitado na cama, impávido, o fumo (do cigarro) a subir, como se tivesse o peito a arder.