Rockers in space
O rock pode rolar no espaço. Descolou nos anos 60 e até hoje não aterrou. Guitarras e sintetizadores planam entre as galáxias e os neurónios. Ácido e estrelas. Muitos foram os que partiram, alguns, como Hendrix, não chegaram. O "space rock" é para se ouvir lá no alto. Em Portugal, os astrorockers habitam em Saturnia
Quando o cérebro incha, a música pede uma casa maior. Foi isso que aconteceu nos anos 60 e 70, quando o psicadelismo, alimentado a quantidades mais do que razoáveis de LSD, obrigou a tirar novas medidas ao espaço e ao tempo. Stanley Kubrick realizou "2001, Odisseia no Espaço" em 1968, a mesma "space oddity" que, por esses anos, fez com que Bowie se perdesse no vácuo...Além de Bowie, muitos músicos embarcaram no filme. "Space is the place" apregoava o jazzman alienígena Sun Ra, líder de uma Astro Intergalactic Infinity Arkestra e navegador anarca, a bordo do sintetizador Moog, dos espaços mais obscuros da música improvisada. Ainda no jazz, John Coltrane alimentou a sua alma de estrelas e cometas. Ele próprio o sol de um sistema solitário. O rock nem sequer precisou de comprar bilhete - teve sempre a cabeça fora do lugar.Como é sabido, o ácido lisérgico faz com que tudo se passe mais devagar e com bastante cor. As faixas dos LPs esticaram de duração. Por outro lado, as emanações electrónicas dos sintetizadores Moog, A.R.P., VCS3 ou EMS, verdadeiras naves espaciais para a mente, a par do arsenal de radiações e distorsões espaciais proporcionados pela guitarra eléctrica, como foram revelados ao mundo por Jimi Hendrix, contribuiram igualmente para fazer vibrar os neurónios dos jovens músicos das décadas do psicadelismo e do rock progressivo, em frequências desfasadas da pop e do rock mais convencional. O "space rock", firmamento sónico suficientemente vasto para albergar as mais fantasiosas viagens da imaginação, explodiu como uma supernova. Em Londres, em clubes como o U.F.O., onde os Pink Floyd e os então psicadélicos Soft Machine alucinavam graças à droga, à loucura de rapazes digamos que fora do normal, como Syd Barrett e Daevid Allen e a shows de luzes que iluminavam as paredes e as cabeças de arco-íris. Por essa altura já a guitarra em chamas de Hendrix voava em direcção aos locais mais escuros do firmamento, até se volatilizar num buraco negro. Mas enquanto brilhou, teve o brilho de um astro em colapso.carteiros cósmicos. Do outro lado do Atlântico, na costa Oeste dos EUA, onde a trip avançou com maior rapidez, tornada movimento sócio-cultural nos "love ins" ou nas desvairadas sessões de "acid rock" levadas a cabo na região de São Francisco com a presença de bandas como os Grateful Dead e Jefferson Airplane, e a tutela do papa do LSD, Timothy Leary. O espaço tornara-se, definitivamente, "o lugar".Um lugar que, na Alemanha, se estenderia até mais longe. Foi um ditador iluminado, Rolf-Ulrich Kaiser, patrão da editora Ohr ("ouvido"), o principal impulsionador da viagem. Rolk-Ulrich Kaiser, a quem Julian Cope - ex-Teardrop Explodes, "acid head", um dos genuínos psicadélicos do milénio, autor de uma obra a solo incendiada de rock e visionarismo - chama simplesmente "Kaiser", no seu livro sobre krautrock, "Krautrocksampler", criou os conceitos da "kozsmisch muzik" ("música cósmica") e "Kozmisch courriers" ("carteiros cósmicos"). A Ohr foi uma janela aberta por onde passaram, quais Peter Pans empaturrados de ácido, espaçonautas como Klaus Schulze, Ash Ra Tempel, Mythos, Agitation Free, Annexus Quam e Wallenstein. Destes, os Ash Ra Tempel e os Wallenstein foram os que conseguiram manter a cabeça ao mesmo tempo no rock e no espaço.Os Ash Ra Tempel eram o templo. Manuel Góttsching e Klaus Schulze, os sacerdotes. Com o incitamento e o LSD fornecidos pelo "kaiser", partiram para uma "trip" que Cope, no seu livro, chega a considerar "assustadora". Os Ash Ra Tempel colaram os fundamentos do rock 'n' roll e os blues à electrónica mais "out", em intermináveis improvisações que, na versão completa, o patrão da Ohr editou em quatro álbuns assinados pelo colectivo The Cosmic Jokers. Enquanto Ash Ra Tempel, o grupo lançou cinco álbuns em que a ideia de "desbunda cósmica" adquiriu contornos de genuína loucura (o baixista, Helmut Enke, viria mesmo a ficar irremediavelmente preso no "lado de lá"...): "Ash Ra Tempel", "Schwingungen", "Seven-up" (com a participação de Timothy Leary, "the acid priest"), "Join inn" e "Starring Rosi". Não se explica a dimensão desta trip por palavras.Ainda mais alto, Rolf-Ulrich Kaiser e os Ash Ra Tempel subiram ao cume dos Alpes para gravar com o poeta e místico suíço Sergius Golowin o álbum "Lord Krishna von Goloka". Outro álbum mítico, "Tarot", conta com a presença do mago cigano Walter Wegmuller que desenhou um baralho inteiro de cartas Tarot para acompanhar a edição do disco. Sobreviveram ao cataclismo os que conseguiram fazer sobrepor as suas qualidades de músicos à ousadia das explorações lisérgicas: Manuel Göttsching, que faz carreira a solo como o guitarrista mais planante do mundo, Klaus Schulze, um dos pioneiros da electrónica cósmica, autor de uma vastíssima discografia onde longuíssimas paisagens de sintetizador se fundem com o romantismo de Wagner, e Harald Grosskopf, baterista dos Wallenstein, a segunda banda mais importante (e a mais bem comportada...) do "space rock". Em França, Richard Pinhas, com os Heldon, e Cyrille Verdeaux, com os Clearlight, destacaram-se de uma pleíade de bandas que, na década de 70, pesquisaram o firmamento (Pôle, Ose, Lard Free...).Foi assim, até ao ano do "crash". O regresso à Terra foi duro. Sem pára-quedas. O punk chegou em 1976 para apagar a luz e desligar a tomada. O espaço encolheu. As estrelas foram tapadas com um manto de ferrugem. A viagem terminava abruptamente na lama, nas guitarras mal tocadas, no assassínio ritual dos sintetizadores. O ácido coalhou e foi trocado pelas anfetaminas e pela heroína. Deixou de haver espaço para visões.Foi preciso esperar 20 anos para que a nave voltasse a descolar. Começou na tecno, subiu pelo "trance" e desapareceu de vista com o pós-rock. O espaço é novamente um bom lugar para se estar, habitado pelos Stereolab, Biosphere ou Gorky's Zygotic Mynci. E ao ouvirmos Julian Cope cantar em 1996 "Spacerock with me", como um hino de libertação do rock 'n' roll, percebe-se que hoje, como na mítica saga de Kubrick, o limite é o infinito.