"Peron nunca valorizou a democracia"
Professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, o sociólogo Ricardo Sidicaro é autor, entre outras obras, da biografia "Juan Domingo Peron". Este livro é considerado uma referência, quando se trata de compreender o peronismo - e, portanto, a própria ArgentinaRICARDO SIDICARO - Não, nenhum sentido. Peron pode ter tido alguma simpatia pelo fascismo, mas, em 1943, quando chega ao poder, já o fascismo no mundo estava em decadência. Não se pode imaginar que, naquele momento, os Estados Unidos e os aliados permitissem que se fizesse na América Latina algo parecido com o que se passou na Alemanha ou em Itália. O que é um facto é que Peron usava o Estado para organizar a sociedade, as corporações de empresários, os sindicatos, e essas ideias, em princípio, podem ter algo a ver com os regimes fascistas. Mas Peron tinha o apoio das classes populares. Se era fascismo, seria um fascismo de esquerda, porque tinha a seu lado toda a base da sociedade e, contra ele, praticamente todos os sectores patronais. Em certo sentido, pode-se dizer que Peron matou pouco. Perseguiu as liberdades públicas, isso é certo, mas não se pode dizer que tenha feito disso uma doutrina oficial forte, que minasse o carácter de uma democracia liberal. Isso não nega que, na sua origem, houvesse fascistas que se incorporaram no peronismo. Mas, de resto, também houve comunistas e socialistas que enfileiraram pelo peronismo. A tendência do peronismo de apoiar os sindicatos, além de uma certa demagogia permanentemente a favor das classes populares, mais do que o que efectivamente tirou aos patrões, é que indispôs Peron com a elite e, num nível mais simbólico do que económico, fez dele um líder popular. Economicamente, favoreceu as classes populares, mas não a ponto de se justificar o fenómeno em que se tornou. P - Foi o peronismo que levou Peron ao poder ou, ao contrário, foi o poder que, nas mãos de Peron, tornou possível o peronismo?R - Não há peronismo antes de Peron no poder. Foi através de um golpe de Estado que Peron chegou ao poder e, então, começou a pôr em prática as ideias que vieram a gerar o peronismo. E, de certa forma, as suas ideias não eram, então, muito diferentes das de Franklin Roosevelt nos anos 30. Peron sempre tentou pôr todos juntos num grande acordo nacional. Foi a dinâmica social da Argentina daqueles anos 40 que acabou por pôr as classes populares a favor de Peron e as patronais contra. Isso não foi resultado de um projecto deliberado de Peron.P - Qual é o marco da fundação do peronismo?R - Em 1945, quando Peron já tinha muita força, mas nunca tinha posto à prova a sua popularidade. Nesse ano, os militares tentaram afastá-lo e, para sua surpresa, viram-no apoiado por uma mobilização popular que é tida como o marco histórico da fundação do peronismo. Após 46, Peron passa a ocupar o poder a partir de eleições e faz, de facto, um grande governo, com políticas de Estado bem definidas, com resultados concretos, quer no plano social, quer no desenvolvimento industrial; fecha a economia, com uma política de substituição de importações - e é aí que nasce o carácter nacionalista do peronismo. Mas essa política não deixou de ferir interesses, inclusivamente de sectores das forças armadas, que, em 1955, derrubaram-no num golpe de Estado para cujo sucesso terá contribuído decisivamente o esgotamento de um regime que já durava há dez anos.P - Como se comportou o povo em 1955?R - Eu diria que 50 por cento dos argentinos apoiavam Peron e 50 por cento lhe eram contrários, mas, depois de dez anos de governo, era natural que o Presidente tivesse mais dificuldades para animar os que o apoiavam. P - Com Peron derrubado e exilado, o que aconteceu ao peronismo?R - Digamos que os peronistas que acompanharam Peron no Governo "se aburguesaram". Após dez anos no poder, melhoraram de vida, ficaram mais moderados nas suas ideias - isso poder-se-ia dar com um burocrata soviético ou fascista, e não haveria de ser diferente com um peronista. O Governo que se instalou a partir do derrube de Peron não tem, a princípio, muitas iniciativas contra a classe operária, mas, aos poucos, vão predominando os que querem uma vingança contra os sectores que apoiaram Peron. Há então uma série de greves, repressão, há alguma - embora não muito acentuada - queda salarial, mas, acima de tudo, a classe operária sentiu que lhe tinham cortado os vínculos com o Estado. Não que tenham tido coisas extraordinárias na época de Peron, mas sempre havia algum vínculo, e a sua perda reforçou o peronismo durante o exílio de Peron. P - Como se comportou Peron durante o exílio?R - Ele saiu da Argentina como quem diz adeus. De vez em quando, enviava alguma carta, apoiando uma ou outra figura política da época, mas nunca deixa transparecer qualquer intenção de voltar. Com o tempo, o Governo começa a desgastar-se e, na mesma proporção, a figura de Peron começa a crescer. Muitos jovens, inspirados pela revolução cubana e pelo movimento terceiro-mundista e anti-imperialista em geral, passaram a valorizar a história nacionalista do peronismo. Os Montoneros [grupo de guerrilha de esquerda], que aparecem em 1969, são uma expressão desse fenómeno. E Peron, cuja marca sempre foi a de aceitar todos os apoios que lhe fossem oferecidos, não renegou os Montoneros.P - Como explica que Peron, que aceitou o apoio dos Montoneros, tenha inspirado a criação da Aliança Anticomunista da Argentina (AAA)?R - Isso vem depois. Quando Peron volta à Argentina, em 1972, e, em 73, é eleito Presidente, deu-se conta de que os Montoneros tinham assumido uma posição um tanto niilista, aproximavam-se de Cuba, e não seriam, portanto, facilmente compatíveis com a sua proposta de governo, que previa reformas, sim, mas sem radicalismo revolucionário. Já com Peron no Governo, em 73, os Montoneros mantiveram as suas acções, mataram gente, e Peron, que durante o exílio incentivava todos os que pudessem criar problemas ao Governo, passa evidentemente a ter uma atitude muito diferente, quando é ele próprio o Governo. Em 73, Peron tinha 78 anos, passava apenas parte do dia lúcido, e tinha um secretário - Lopez Rega - de quem terá partido, com a anuência de Peron, claro, a criação da AAA, que não se dedicava apenas a assassinar comunistas, mas qualquer pessoa que estivesse contra eles - peronistas incluídos.P - Há quem diga que, quando Isabel Peron assumiu a Presidência após a morte do marido, em 74, quem de facto governava era Lopez Rega. É verdade?R - Lopes Rega teve grande influência na escolha de Isabel para a vice-presidência, na medida em que foi um dos responsáveis pela falência de um acordo que previa que um membro da União Cívica Radical ocupasse o cargo. Foi, portanto, fundamental para o processo que acabou por levar Isabel à Presidência. Por isso, teve muito poder durante o Governo da viúva de Peron. Mas era apenas parte de um grupo. P - Antes de Isabel, há outra figura feminina importante: Evita Peron.R - Evita é um caso interessante. Não é qualquer uma que, aos 24 anos, se enamora de um coronel de 50 e atinge, pouco a pouco, um protagonismo como o que Evita atingiu. No plano pessoal, possivelmente tinha uma sensibilidade particular para as questões sociais e, no plano político, os dois dividiam tarefas: Peron era mais formal e Evita a exaltada. Morreu com 33 anos - a idade de Cristo - e isso claro que contribui para que se tivesse tornado um mito. P - É uma impressão errada ou, de facto, o que alimenta a mitologia peronista é hoje mais a figura de Evita do que a de Juan Domingo?R - O mito peronista hoje, na verdade, não se alimenta tanto das figuras do próprio Peron ou de Evita quanto da justiça social - que não havia, na época de Peron, mas que, no imaginário popular, tem a sua existência mítica. O peronismo hoje é a lembrança de uma época em que se supõe que se vivesse melhor, mas o último e fracassado período de Governo Peron (73-74) trabalhou contra o mito de Peron. Além disso, a Argentina deu um salto muito importante depois da ditadura militar, no sentido de valorizar a democracia. E Peron não se identifica com isso. Ele foi um grande administrador do Estado, um nacionalista, mas nunca valorizou a democracia.P - O primeiro Presidente eleito depois da ditadura militar foi Alfonsin, da União Cívica Radical. O que aconteceu com o peronismo durante a ditadura para que a vitória fosse de Alfonsin?R - O peronismo fez oposição à ditadura, mas houve muitos peronistas que foram complacentes com ela.P - Os peronistas estão sempre nos dois lados?R - Há uma frase de Mussolini que se aplica ao peronismo. Quando lhe perguntaram como se dividiam as forças políticas em Itália, Mussolini disse que 20 por cento eram de esquerda, 20 por cento de direita, mas que fascistas eram todos. O peronismo não é uma força política como um partido que se reúne e tem que criar um programa. Os peronistas reúnem-se e decidem que têm que se unir, porque, se estiverem unidos, vencem. E o peronista em torno do qual os outros se unam faz o que quer. Não há programa nem compromisso. O último exemplo disso é Carlos Menem, que, eleito pelo peronismo, adoptou uma política neoliberal, com custos sociais elevadíssimos, como o desemprego. Quem era o vice de Menem? Era [Eduardo] Duhalde, que depois se afastou de Menem e que hoje, feito Presidente pelo peronismo, promete - pelo menos, promete - uma política que, em certo sentido, é contrária à de Menem. Não se pode entender a Argentina enquanto se pensar que os peronistas se juntam em torno de ideias. Eles juntam-se porque, juntos, vencem.P - Por que motivo, juntos, os peronistas vencem?R - Os sindicatos são peronistas e controlam grande parte dos votos das classes populares urbanas. Nas províncias há os caudilhos, como esse Rodriguez Saá, que foi Presidente, e que dominam, pelo clientelismo, os votos das suas regiões. A isso somam-se sectores tradicionalmente peronistas da classe média. P - E assim continuará a ser, ou acredita no surgimento de uma força alternativa que encerre o ciclo peronista?R - Parece-me que uma nova liderança apenas poderia emergir através do Estado, como aconteceu com o próprio Peron, que só depois de tomar o poder, através de um golpe de Estado, engendrou o peronismo. Também neste momento me parece que uma nova liderança só poderia surgir se antes tomasse o poder.P - Há quem fale na possibilidade de uma guerra civil. É uma hipótese?R - Para que haja uma guerra é preciso que haja duas forças antagónicas e minimamente organizadas e armadas. E na Argentina não há.P - E os militares?R - Há um grupo muito pequeno de militares que acredita na possibilidade de golpe. Eles têm um chefe - Seineldin, que está preso desde que, na década de 90, tentou um golpe -, mas os militares que protagonizaram a ditadura de 70-80 saíram-se tão mal que não querem repetir a experiência. E, se amanhã alguns militares tentassem alguma coisa, teriam a oposição de 80 por cento da população.