Morreu Pierre Bourdieu, um sociólogo de combate
O sociólogo francês Pierre Bourdieu, reconhecido mundialmente como uma das figuras mais importantes da sociologia contemporânea, morreu na noite de quarta-feira, aos 71 anos, com um cancro, em Paris. Professor catedrático da cadeira de Sociologia no prestigiado Collège de France, desde 1981, director da revista "Actes de la recherche en sciences sociales" e presidente do CISIA (Comité Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos), Pierre Bourdieu deixa uma obra considerada como fundadora da sociologia crítica da modernidade. Vigoroso opositor ao liberalismo económico e à globalização - mas ferrenho universalista - Bourdieu interveio também no terreno social, tornando-se assim num descendente da linhagem de intelectuais como Michel Foucault ou Jean-Paul Sartre. Paradoxalmente, este investimento militante tão típico dos intelectuais franceses valeu-lhe violentas críticas dos seus pares, que eclipsaram, nos últimos anos, a obra de um mais importantes pensadores da segunda metade do século.O professor e investigador alargara o seu auditório nos anos 90, ao denunciar a miséria social, cultural e moral provocada pelo neo-liberalismo económico, e ao tomar claramente partido pelos movimentos grevistas de 1995, em França. Nessa altura, já era conhecido para além do estrito campo da sociologia universitária, com "A Miséria Humana", que encontrara um vasto público em 1993, e lhe valeu e um imenso sucesso de livraria. Nesse livro, o sociólogo afirma que a visão "matemática" da ciência económica introduz uma utopia que domina completamente o campo político. É, para Bourdieu, uma ideologia dominadora que faz aceitar a destruição das estruturas de integração e de protecção social.Mas a notoriedade académica deste filho de camponeses do sudoeste da França começara muito antes, em 1964, com "Les héritiers", uma crítica do ensino superior em França. Filósofo de formação, amigo de Jacques Derrida, que conhecera nos anfiteatros da École Normale Supérieure, Pierre Bourdieu faz na Argélia as suas primeiras observações de sociologia, em finais dos anos 50, para onde fora destacado como professor.Na homenagem que o diário "Le Monde" lhe prestou ontem, lê-se uma citação de um dos discípulos do sociólogo, Louis Pinto, autor de "Pierre Bourdieu et la théorie du monde social": "O seu contributo para a sociologia é antes de mais uma maneira nova de ver o mundo social." A "violência simbólica", tema central da obra de Bourdieu, "exerce-se através do jogo dos actores sociais" e não apenas como uma instrumentação ao serviço da classe dominante. De facto, Bourdieu, através da sua teoria da prática, conseguiu introduzir um dinamismo que a sociologia clássica nunca alcançou. Ou seja, as estruturas simbólicas só ganham significado quando são postas em prática. Com "La Distinction" (1979) e "La Noblesse d'Etat" (1989), Pierre Bourdieu prossegue as suas reflexões sobre as práticas culturais dos franceses, os diferentes níveis de linguagem e os preconceitos socialmente determinados. Mas ao publicar "Sur la télevision" (1997), Bourdieu ganha violentas inimizades nos meios mediáticos franceses. Neste estudo, o sociólogo considera que os media estão cada vez mais submetidos a uma lógica comercial, dando a palavra apenas a "ensaístas palradores e incompetentes". Os jornalistas vedetas da televisão verão nele, daí por diante, um "mandarim" universitário e impõem uma espécie de purgatório mediático a quem ousar defender alguma tese de Bourdieu. É verdade que há uma "escola Bourdieu", ou um colectivo "Bourdieu" de discípulos que se manifesta, de forma militante, na pequena editora "Liber Raison d'Agir". As publicações, baratas e cuidadas, pretendem tornar obras fundamentais acessíveis ao maior número possível de pessoas. Curiosamente, "Liber Raison d'Agir" triunfa no terreno da edição, nomeadamente com "Os Novos Cães de Guarda", de Serge Halimi. Que Bourdieu vença no "mercado" com métodos diametralmente opostos à pré-programação das vendas e dos sucessos de intelectuais desacreditados, enraivece os seus opositores. Afinal, quem é o dominante, quem é o dominado? A saída de "La Domination Masculine", em 1998, relança a polémica com mais virulência. Este estudo incide na "lógica da dominação" (racial, económica, sexual, etc.) em geral, mas escrutinando o caso particular das relações homens-mulheres. Bourdieu convida os leitores a ultrapassarem a alternativa clássica, nos trabalhos sobre a dominação, entre "coacção" e "consentimento", e a considerarem que a dominação masculina se perpetua porque as mulheres são educadas para interpretarem o mundo com os esquemas e as categorias sociais incorporadas no pensamento masculino.No único documentário existente sobre Pierre Bourdieu, vê-se o sociólogo a intervir num dos subúrbios mais duros de Paris, explicando a uma audiência de adolescentes pouco simpáticos que "a sociologia é um desporto de combate... não para atacar, mas para se defender".Um dos miúdos interpela violentamente Bourdieu, tratando-o de "mais um dos charlatões que vem ver a violência dos subúrbios". A sala assobia, aquiesce, torna-se ameaçadora. Pierre Bourdieu encaixa mal, não gosta, mas, em vez de dar graxa, para salvar a pele, passa um raspanete ao jovem, e mete a sala na ordem com a temática: "Sei muito mais do que vocês todos, o movimento operário rebentou por causa do anti-intelectualismo". Nos minutos seguintes, chega a ser injurioso. Pois bem, no fim, os miúdos aplaudiram-no. De pé.