Chorão Ramalho: Desapareceu um dos grandes arquitectos da obra pública
Com grande simplicidade, Raul Chorão Ramalho dizia que a arquitectura é, primeiro, "entender um lugar", depois, "resolver problemas", buscando sempre a beleza. E a isso dedicou meio século de vida. Faleceu quarta-feira, aos 87 anos, na sua casa de Algés, em sequência de um acidente vascular cerebral. Deixa uma vastíssima obra pública - hospitais, escolas, centros de segurança social, até centrais hidro e termo-eléctricas, uma embaixada, uma capela, uma pousada - que abrange todo o território português (incluindo um núcleo fundamental na Madeira), e se estende por Brasil ou Macau. Dessa herança, colegas e críticos destacam, além do grande saber técnico, uma exigência ética e estética no entendimento do que deve ser um edifício público. "Eu diria que ele é o grande arquitecto da obra pública", sintetiza o arquitecto Victor Mestre, que comissariou a mostra retrospectiva da obra de Chorão Ramalho, em 1997, na Casa da Cerca, em Almada, além de com ele ter colaborado intensamente nos últimos 15 anos. "Chorão Ramalho entendeu que os edifícios públicos deveriam representar os valores mais altos da civilização urbana, que vêm dos gregos e dos romanos. Faz uma interpretação notável do espaço público, tanto exterior como interior do edifício: equilíbrio dos volumes, citação de elementos da arquitectura popular e vernacular, recriando-os, aproximando assim os edifícios da sua envolvência cultural histórica."Como exemplo máximo desta "arquitectura perene e de grande contenção", Victor Mestre refere o Hospital de Viana do Castelo (1977): "Do ponto de vista arquitectónico é o melhor do país. E como tal é reconhecido pelos médicos, pelos enfermeiros, pelos utentes." Numa extensa entrevista conduzida por Ana Sousa Dias (PÚBLICO, 11 de Abril de 1999), Chorão Ramalho elege justamente esta obra como a que lhe deu mais prazer. Era o seu segundo hospital (o primeiro foi o de Beja, em 1955) e, explicava ele, em arquitectura "um hospital é a obra mais complexa que há". Na mesma resposta, destaca ainda a Caixa de Previdência de Setúbal (1968), o Centro de Segurança Social no Funchal (1968), a Escola Pedro Nolasco em Macau (1969) e a Embaixada de Portugal em Brasília (1976). O conjunto formado pelos centros de segurança social do Funchal, de Setúbal e de Angra do Heroísmo (este, de 1971) é outro dos pontos-referência da obra de Chorão Ramalho, segundo Victor Abreu: "O centro de Angra resistiu ao terramoto, quando tudo à volta caiu, chegou a albergar 600 pessoas lá dentro. É o exemplo de obra feita para durar, de grande qualidade construtiva, que atravessou décadas e provavelmente vai atravessar séculos."O arquitecto Manuel Tainha, companheiro de geração de Chorão Ramalho e que com ele partilhou o espaço de um célebre atelier da Rua da Alegria, em Lisboa - onde também trabalhavam Nuno Teotónio Pereira, Bartolomeu da Costa Cabral, Manuel Alzina de Meneses - realça a Caixa de Previdência de Setúbal pela "robustez conceptual, técnica, estilística e ética", que é, diz, "o estribilho" da arquitectura de Chorão Ramalho, dominada toda ela por um "conceito de serviço público, com grande exigência e consistência". "Belíssima peça", acrescenta - e reveladora da influência da estética oriental, nomeadamente depois de uma marcante visita ao Japão - é a Escola Pedro Nolasco, em Macau.Nascido no Fundão em 1914, Raul Chorão Ramalho fez o liceu em Coimbra - fundou um grupo de artistas plásticos chamado "Os divergentes" -, entrou em Belas Artes na escola de Lisboa - estava a descobrir Corbusier, Mies van der Rohe: tinha a absoluta convicção de que seria arquitecto -, e foi acabar o curso ao Porto - onde havia, recorda ele na entrevista já citada, "outra liberdade", para além do gosto do Estado Novo, a que ele chamava "português suave". Começou, ainda estudante, a trabalhar com Keil do Amaral e Carlos Ramos e estabeleceu-se em Lisboa. O seu primeiro projecto foi a remodelação do armazém da Farmácia Sanitas, na Rua das Flores, onde hoje é a Galeria Palmira Suso. Iniciado ainda no final dos anos 40, o complexo que ficou conhecido como Centro Comercial do Restelo tornar-se-ia o seu primeiro trabalho emblemático, como recorda Ana Tostões, arquitecta e historiadora de arquitectura. Situando Chorão Ramalho na geração dos modernos dos anos 50, a nascida do Congresso de de Arquitectura de 1948, Ana Tostões sublinha "o modo autêntico e muito reflectido" como este arquitecto encara a modernidade, "transformando-a de uma forma muito pessoal, com grande honestidade ao nível dos materiais". Cita como modelos o tratamento "fabuloso" do betão no projecto da Embaixada Portuguesa em Brasília (de que só foi contruída a chancelaria), a forma como é desenvolvido o tradicional "reixado" (fragmentos de madeira) na Moradia Bianchi (Funchal, 1959), ou, no já referido complexo do Restelo, a utilização do painel de azulejo padrão, com desenho de Querubim Lapa.A solicitação de artistas plásticos para as seus projectos foi, aliás, uma constante de todo o percurso de Chorão Ramalho - refiram-se ainda Espiga Pinto, Júlio Resende, Jorge Vieira, Sá Nogueira, Dourdil, Martins Correia.De um trabalho que se estende por mais de quatro décadas, Victor Mestre retém ainda um "testemunho tremendo para quem quer aprender a ser arquitecto": o facto de Chorão Ramalho ter atravessado "grandes transformações do gosto sem se ter deixado contagiar por situações epidérmicas", o que é revelador de "forte carácter" e grande abrangência cultural. "Sempre integrou sem copiar, foi um arquitecto de corpo inteiro, um arquitecto completo."