Wordsong faz música com livro no 54º aniversário de Al Berto
Não é a primeira vez que Alexandre Cortez, baixista dos Rádio Macau, trabalha sobre a obra de Al Berto. Há quatro anos atrás produziu o espectáculo em que se comemorou o 50º aniversário do seu amigo Al Berto, no qual participaram nomes como Sérgio Godinho e António Pinto Ribeiro, e antes, em meados da década de 90, fez parte da equipa que levou à cena "Filhos de Rimbaud", uma performance em que participaram músicos como Jorge Palma, Sérgio Godinho, João Peste e Rui Reininho e em que o próprio Al Berto colaborou com poemas que, mais tarde, viriam a fazer parte do livro "Horto de Incêndio". O próprio universo de Al Berto, mesmo que de forma pouca explícita, esteve sempre carregado de referências musicais, fossem elas o tango de Buenos Aires, o desolamento dos Joy Division ou o teor transgressor dos Velvet Underground. Nada mais natural, portanto, que um grupo de músicos constituído por Alexandre Cortez, Pedro d'Orey (ex-Mler Ife Dada) e Nuno Grácio (ex-Ravel), se dediquem agora à construção de uma música que parte, precisamente, dos textos de Al Berto.Os três já se tinham encontrado num projecto algo efémero, mais ainda assim com vitalidade para actuar em algumas dezenas de espectáculos, intitulado Cães de Crómio, algures em meados dos anos 90. Voltaram agora a encontrar-se para construir um projecto que não é musical nem é poético, sendo ambas as coisas. Pedro d'Orey, um diseur pouco clássico pela forma como transtorna, saboreia, manipula e atira as palavras, gosta de dizer que se trata de "música com livro", uma nova "arte" que o projecto Wordsong pretende levar até aos palcos o mais brevemente possível.Neste momento, o projecto encontra-se a finalizar a dúzia de temas que já registou, num estúdio caseiro nos arredores de Lisboa. Os textos de Al Berto, tratados com "o devido respeito", são ditos e musicados sem preconceitos, de uma forma quase radical que não evita o improviso nem teme o aprofundamento de um imaginário feito de "artérias vivas, noites vivas". Desta vez, é a música que contamina as palavras. Se a música foi composta e gravado, por Alex, Nuno Grácio, mas também por Tó Trips (dos Lulu Blind) e Beto Garcia (baterista dos Rádio Macau), a sua vocalização parte de um impulso quase primitivo: "é como abrir o livro e deixar sair qualquer coisa".Em Março estará finalmente nas lojas, mercê da distribuição e edição da 101 Noites, o primeiro capítulo de Wordsong, um documento que além de um CD com uma dúzia de temas, inclui um livro com os textos originais de Al Berto mais as devidas anotações provenientes da manipulação fonética operada por Pedro d'Orey. "Os poetas e a sua obra são o pano de fundo sobre o qual trabalhamos" adianta Pedro d'Orey, mas o projecto Wordsong não segue rigorosamente os textos do poeta: "não queremos cantar porque fazemos uma coisa que é anterior, pois parte do prazer de, simplesmente, emitir em português, falar em português". Caetano Veloso diria tratar-se do gozo de "roçar a língua na língua de Camões."Dada a especificidade do projecto, Wordsong não descura a hipótese de ser apresentado além fronteiras, bem como a possibilidade de utilização de vários elementos multimedia. As apresentações públicas deste projecto de "música com livro" prevêm a utilização de vídeo e suscitam a utilização de variados tipos de salas como bibliotecas, auditórios ou mesmo um formato bem próximo do concerto de música pop. Além do livro/disco e dos espectáculo, Wordsong estará disponível na Internet, num sítio em que todos os temas poderão ser descarregados sem que exista a obrigação de pagar seja o que for. "Foi deliberadamente assumido que este projecto não iria ser apresentado a qualquer grande editora", confessa Alexandre Cortez.Nem só Al Berto irá ser alvo do tratamento do Wordsong - expressão que pode ser traduzida como texto-canção mas que também é um trocadilho com "workshop". Além do autor de "O Medo", outros poetas irão ser abordados, musicados, revistos e aumentados, sejam eles da língua portuguesa ou de outras, o que oferece uma liberdade de movimentos a este projecto que lhe permitirá subsistir para lá desta homenagem a Al Berto.Apesar de já estarem registadas 15 faixas, o primeiro capítulo do projecto Wordsong deverá incluir doze temas-canções que não se inscrevem em nenhuma sonoridade particular, antes preferindo percorrer vários caminhos da música contemporânea. Há canções que se aproximam deliciosamente do formato pop, sendo "Les Mots", certamente o tema mais bem conseguido sob essa perspectiva. Uma batida preguiçosa, perto daquilo que por comodidade se costuma chamar trip-hop, é acompanhada por uma melancólica melodia que serve de fundo aos jogos fonéticos, desta feita em francês, de Pedro d'Orey. Mas nem só de ritmos partidos vive Wordsong: "Telegrama" é uma bossa-nova à maneira antiga mas com todos os predicados que lhe oferecem pertinência nos dias de hoje, não só pelo bom gosto mas pelo contraste rigoroso entre o ambiente solarengo e o texto dito: "Telegrama. Renuncio atravessar a cidade cheia de aventuras. Stop. A morte roça-se nele sem se aperceber que a morte tem a sua vez". "A Casa" e "2 Cintilações", igualmente próximas de uma estrutura própria da canção tradicional, já dão espaço a voos vocais mais arriscados. Um "loop" sacado a um disco antigo de Duke Ellington encena ambientes bem mais fumarentos e negros, com uma qualidade jazzística que é recuperada para actualidade; da mesma maneira que um acorde da guitarra portuguesa de Carlos Paredes funciona como um motivo que é desenvolvido muito para lá das suas circunstâncias originais. No projecto Wordsong pressente-se por isso uma liberdade que para se afirmar não precisa de evitar os formatos mais clássicos, da mesma maneira que não se circunscreve à estrutura original dos textos de Al Berto. "Quisémos fazer uma coisa que o Al Berto ia gostar" rematou Alex.