Grandmaster Flash e a velha Nova Iorque
Na viragem da década de 70 para a de 80 teve um papel crucial na implantação de um dos géneros mais influentes para a música popular das duas últimas décadas - o Hip-hop. Em 2002, Grandmaster Flash diz presente às novas gerações.
Antes do mito existia a realidade, antes da realidade existia o mito. Existem muitas histórias à volta das origens do hip-hop, algumas verdadeiras, mas o mais certo é que o mistério perdure para sempre, porque o mito e a realidade acabaram por se misturar. Certezas apenas uma: o hip-hop transformou-se no suporte da maior parte das revoluções operadas na música pop desde os anos 80. Como é que tudo começou? Uma das versões pode ser esta. Por exemplo, que a meio da década de 70, um DJ jamaicano, Kool Herc de seu nome, começou a tocar discos de reggae em festas no Bronx. Mais tarde começou a misturar discos de reggae e de funk, com um MC a declamar por cima coisas como "to the Eastside, to the Westside, make money, make money", numa celebração evidente das rivalidades territoriais. Nesta altura, o hip-hop era um fenómeno diverso daquele que hoje conhecemos. Era 'lo-fi', estritamente local, os DJs estavam ao serviço do público, os MCs ao serviço dos DJs. No entanto, esse facto não impedia que se produzisse química entre quem propunha a música e quem se disponibilizava para a desfrutar. As principais figuras emergentes eram então Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash. Eram os verdadeiros alquimistas que criavam uma música nova a partir de música alheia. A música era "editada" nos gira-discos em tempo real, de forma a que a sua estrutura - verso, refrão, verso - fosse eliminada, deixando apenas visivel repetições, fragmentos e traços da memória da canção conhecidos como "breaks". "The break took it to the bridge" dizia James Brown na canção, fazendo com que o hip-hop fizesse a ponte com outros géneros dos anos 70 - 'disco', funk de James Brown, afrobeat de Fela Kuti, dub, jazz eléctrico de Miles Davis, minimalismo - e explorasse elaborações, variações e repetições com todos eles. E a ponte transformou-se numa ponte para outro mundo, que revisitava o passado, suspendia o tempo e transformava o familiar em algo completamente irreconhecível. Na linha da frente desta revolução posicionava-se Joseph Saddler, que viria a ficar conhecido por Grandmaster Flash. o velho senhor. Nasceu em 1958. Cresceu no Bronx e começou a passar música em áreas de dança conhecidas como "block parties" (festas normalmente ao ar livre na tradição dos "sound-systems" jamaicanos). Em casa, ouvia a música latina de Tito Puente e Eddie Palmieri, o jazz de Miles Davis, a soul da Motown e o funk dos Sly & The Family Stone. Num curto espaço de tempo desenvolveu uma série de técnicas enquanto DJ que lhe permitiam encadear os discos que tinha em casa ao mesmo ritmo, repetindo manualmente pedaços da canção ou manipulando a velocidade do gira-discos. Numa frase, Flash foi um dos principais responsáveis pela criação do vocabulário básico do DJ. É principalmente nessa condição que o seu papel tem vindo a ser recuperado. De tal forma que a editora Strut se prepara para lançar uma compilação que retrata o ambiente dessas hoje míticas "block parties", onde Flash misturava funk dos anos 70, electro, "breaks" e temas dos alemães Kraftwerk ou dos japoneses Yellow Magic Orchestra, criando o embrião do que viria a ficar conhecido por hip-hop.A compilação tem por título "The Official Adventures Of Grandmaster Flash" e vai ser o principal pretexto para o regresso em grande do "velho senhor hip-hop". O interesse suscitado é tal que Flash vai realizar uma digressão com actuações previstas para as principais capitais europeias. Numa entrevista recente à revista inglesa "Flux", Grandmaster Flash legitimava o lançamento da colectânea, argumentando que as novas gerações não conhecem as raízes da música que consomem. "Não se pode saber para onde vamos se não sabemos de onde viemos, e estas canções são o pilar do hip-hop. Muitas das novas gerações nem se apercebem que existiu um princípio para esta música", dizia. Mas não é apenas a colectânea que vai ser lançada que celebra o regresso de Flash. A edição recente da magnífica compilação "Waxin' Lyrical Part.One" também celebra a arte pioneira de Grandmaster Flash. Nesse disco é traçado o caminho que viria a dar origem ao nascimento do rap/hip-hop. Uma rota que tem o seu começo nos anos 60 e na música negra de Gil Scott Heron, Roy Ayres ou Isaac Hayes e que desemboca precisamente na Nova Iorque da viragem dos anos 70 para os 80. A "Grande Maçã" dos Sugarhill Gang, de Melle Mel e de Grandmaster Flash. O DJ do Bronx só começou a colaborar com "rappers" a partir de 1977. Primeiro, com Kurtis Blow, depois com os Furious Five - os "rappers" Melle Mel, Cowboy, Kid Creole, Mr. Ness e Rahiem. O grupo tornou-se rapidamente conhecido em Nova Iorque, mas apenas chegaria à gravação de discos depois do sucesso de "Rapper's Delight" dos Sugarhill Gang, que demonstrou que existia mercado para o hip-hop. O lançamento, em 1981, de "The Adventures Of Grandmaster Flash And The Wheels Of Steel" e, em 1982, de "The Message" atribuiram finalmente visibilidade à música de Grandmaster Flash. As técnicas de corte-e-costura, as colagens sonoras de fragmentos de temas dos Blondie, Queen ou Chic e os relatos sociais de Melle Mel, acabavam por se conjugar numa música nova e estranha para os ouvidos que, pela primeira vez, com ela tomavam contacto. Como cantaria mais tarde Debbie Harry dos Blondie no tema "Rapture": " Flash is fast, Flash is cool". Mas Stetsasonic, Public Enemy, A Tribe Called Quest, Eric B & Rakim, Gang Starr, Wu-Tang Clan, Beastie Boys, Cannibal Ox ou De La Soul - ou seja o "who's who" do hip-hop dos últimos 20 anos - também poderiam dizer o mesmo. a compilação "Waxin' lirical Part. One" acabou de ser editada. "The Official Adventures Of Grandmaster Flash" será lançada a 28 de Janeiro. A distribuição em Portugal é da Ananana