Cenas da vida conjugal
O destino de Liv Ullman foi ser actriz (e companheira) de Ingmar Bergman e por isso, como realizadora, o seu destino, que ela não tenta mascarar, é ter sempre a sombra do cineasta de "Persona". "Infidelidade", que adapta um argumento de Bergman, é um filme de uma relação a dois, obviamente, de eventuais cumplicidades, ajustes de contas ou traições - mas só eles saberão mesmo onde está o quê.
Pensar em Liv Ullmann é pensar na actriz de Ingmar Bergman, realizador que lhe abriu um mundo e lhe ofereceu uma carreira, e em cujos filmes foi presença constante entre "Persona" (de 1966) e "Sonata de Outono" (de 1978). Mas não apenas por isso: ser "uma actriz de Ingmar Bergman" não quer dizer que se é só uma actriz de filmes de Ingmar Bergman, significa muito mais (e no caso de Ullmann, esse "mais" passou também pela partilha da vida conjugal). É uma espécie de "marca", um envolvimento entre o umbilical e o vampírico com a obra e a personalidade do realizador sueco, a pertença a um imaginário e a um universo cuja sombra é demasiado forte para ser sacudida - e que o digam, também, Harriet Andersson, Bibi Andersson ou Ingrid Thulin. A prova talvez esteja no facto de, embora tenha entrado em diversos outros filmes (é verdade que pouco ou nada memoráveis, com excepção do "La Diagonale du Fou" de Richard Dembo), Liv Ullmann nunca ter funcionado como funcionava para Bergman, e não haver na sua filmografia qualquer título capaz de se sobrepôr aos que interpretou para ele. O destino de Liv Ullmann, por muito que fosse o seu talento intrínseco, foi ser uma actriz de Ingmar Bergman - e foi esse destino que a história registou.Outra prova, tanto como outro sinal desse destino: que a carreira de Liv Ullmann como realizadora, iniciada a sério na década de 90, acabe também ela por vir ao encontro de Ingmar Bergman. "Infidelidade" é o segundo filme consecutivo que Ullmann dirige sobre argumentos originais de Bergman - o primeiro fora, há uns anos, "Confissões Privadas", um telefilme. De resto, e segundo contou a realizadora, Bergman foi uma espécie de "conselheiro" durante a preparação e rodagem de "Infidelidade": teriam falado e discutido imenso, sobre o argumento e sobre o filme, mas sempre com a consciência (insistiu Ullmann, talvez para sacudir a sombra de Bergman) de que se o argumento era dele, o filme era dela. Claro que uma tal sombra não se sacode facilmente, para mais num filme e num argumento como estes, em que Bergman fez questão de se disseminar e sublinhar que o "habitava": há, no filme, um velho cineasta chamado Bergman (a quem a protagonista relata a narrativa, num registo entre a "ficção sonhada" e a "ficção vivida", como se fosse uma sua personagem), siginificativamente interpretado por Erland Josephson, um alter ego da sua especial predilecção, mas também há, no triângulo que estrutura todos os acontecimentos narrativos, a personagem de um cineasta. Como em Bergman nunca houve um "ecrã" intransponível (como o de "Persona", precisamente) entre a vida pessoal e a vida dos filmes, pode-se adivinhar em "Infidelidade" uma espécie de perverso jogo de ping-pong, um duelo de pontos de vista: Bergman "serve", através do argumento, e Ullmann responde ao serviço, filmando, e sobrepondo o seu olhar ao olhar que a olhava. É um filme de uma relação a dois, obviamente, mas de eventuais cumplicidades, ajustes de contas ou traições só eles saberão mesmo onde está o quê.Sem máscaras. É claro que a "sombra" já mais do que uma vez referida neste texto tem ainda uma outra corporização, ilustrada no facto de Bergman ser (ou ter sido, porque ainda não se percebeu bem se ele já deu por terminada a carreira ou não) um cineasta genial, com uma das obras mais poderosas e imponentes de toda a história do cinema, e Liv Ullmann, mesmo não sendo destituída de talento nem, sobretudo, de "savoir faire" ("Infidelidade" prova-o), não ser muito mais do que uma realizadora aplicada - capaz, na melhor hipótese, de pedir emprestado um imaginário e de o restituir sem o desvirtuar (e isso, "Infidelidade" também o prova). Quer-se com isto dizer, muito simplesmente, que a "sombra" de Bergman também se abate sobre o espectador durante o visionamento de "Infidelidade", e que haverá, quase inevitavelmente, a tentação de começar a imaginar o "filme de Bergman" em vez de ver o filme de Ullmann. E no entanto, se há coisa que ele (o filme de Ullmann) faz, é precisamente dar-se a ver da maneira mais honesta possível, sem nunca pretender fingir ser um filme de Bergman. Há um lado aberto, frontal, quase "teatral" (Ullmann filma diversas cenas em plano geral, como se o plano fosse o espaço do palco, e nalgumas vezes, como na cena em que o marido surpreende a mulher com o amante, o dispositivo funciona muito bem), que se não deixa de ter algo a ver com os processos de Bergman (o cinema dele, afinal de contas, foi a escola dela) também nunca pretende mimetizá-los nem fingir que detém o segredo dos "inserts" ou dos grandes planos "à Bergman".A frontalidade de "Infidelidade" significa também que Liv Ullmann apostou numa constante caminhada em frente, uma espécie de cavalgada narrativa - como se essa fosse uma maneira, enviezada, de alcançar aquela ausência de sentimentalismo que no entanto não deixava outra resposta que não fossem lágrimas, e que era típica dos filmes de Bergman. Por isso, os trechos com a personagem do velho cineasta reduzem-se a apartes simbólicos, e talvez só o simbolismo justifique a sua presença. A força de "Infidelidade" está, muito pelo contrário, no seu lado "directo", dir-se-ia que no seu realismo, ou na sua crueza sem máscaras. Na iluminação, por exemplo, que dá uma fotografia que não se percebe se enleia as personagens ou se as abandona no décor, mas também, e essencialmente, na performance dos actores (e aí sim, estamos em plena "escola Bergman"), com natural destaque para a protagonista Lena Endre, perfeita heroína bergmaniana, impecável de força e vulnerabilidade, coerente em todas as suas contradições.