Mudança d' "A Capital" deixou Portugal sem jornais da tarde
Lembram-se dos jornais da tarde? Ultimamente já não se podia sequer falar no plural, uma vez que só "A Capital" mantinha o facho dos vespertinos. Nos seus anos de ouro, chegaram a representar um terço das tiragens da imprensa portuguesa, mas dos anos 70 para cá não pararam de definhar. Até que, discretamente, há pouco mais de três meses, desapareceram.O dia 7 de Setembro de 2001, data da passagem d' "A Capital" a matutino, constará nas histórias do jornalismo português como o fim de uma era. Com a mudança desaparecia o último dos jornais da tarde. A forma discreta como a transformação aconteceu é considerada pelo seu director, António Matos, uma "migração tranquila". Mas o modo quase imperceptível como se processou só é explicável pela perda de importância desses jornais.Antes da mudança d' "A Capital", e falando apenas dos títulos mais marcantes, tinham desaparecido o "Diário Popular" e o "Diário de Lisboa", uma década atrás, e "A República", tragado no fogo dos conflitos político-partidários do pós 25 de Abril. Mais do que uma tendência estamos em presença de uma realidade ainda mal estudada - o declínio dos vespertinos.No início da década de 70, os vespertinos representavam, como recorda Mário Mesquita num texto do volume "20 Anos de Democracia" da História de Portugal do Círculo de Leitores-Estampa, 35 por cento da tiragem global da imprensa diária. A sua importância ainda cresceu até 1974, quando chegaram aos 39 por cento de tiragens. Nos anos seguintes a esse "boom" - que talvez possa ser explicado pela busca de referências de uma população surpreendida por siglas, protagonistas e linguagens a que não estava habituada -, a sua influência foi diminuindo. Ainda haveria tentativas de recuperação, sem êxito, como foi o último fôlego do "Diário de Lisboa".Nos anos que antecederam o 25 de Abril, "o 'Diário de Lisboa' e o 'República' eram os jornais políticos por excelência e detinham, a nível da imprensa diária, o quase monopólio da contestação (possível) ao regime, enquanto o 'Diário Popular', numa aposta vincadamente comercial, se dirigia a um público mais vasto e menos elitista, atingindo tiragens elevadas, em concorrência com a (então) jovem 'A Capital', seduzida pelo exemplo dos 'tablóides' britânicos", escreveu Mário Mesquita, jornalista, investigador e último director do "Lisboa".Em 1975, o "República" deixou de se publicar e o "Diário de Lisboa" e o "Diário Popular" adquiriram um tom que terá ajudado a comprometer a sua viabilidade futura. O primeiro, escreveu Mesquita, "criou uma imagem demasiado radical que provocou o afastamento de parte considerável dos seus leitores tradicionais"; o segundo "hiperpolitizou-se nos primeiros anos a seguir à Revolução e afastou-se da vocação 'popular' implícita no título". "'A Capital' comportou-se com assinalável estabilidade, ao longo das perturbações pós-revolucionárias."Se estes dados ajudam a entender o que se passou no caso português, a diminuição da importância dos vespertinos parece estar associada a um conjunto de outras razões. A primeira associa quase sempre a redução do peso deste tipo de imprensa ao crescimento da influência das televisões. "Aos noticiários da TV foi atribuída quase toda a culpa pelo desaparecimento dos jornais vespertinos e das revistas de notícias", recordou o historiador Alex McNeil ao "The Boston Globe", quando recentemente foi inquirido sobre a transferência de públicos entre meios de comunicação, no caso da TV para a Internet.Mas a explicação televisiva não colhe completamente. Em países como a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a França, a televisão também tem uma enorme importância e os vespertinos mantêm-se, alguns bem pujantes. Basta lembrar o exemplo do francês "Le Monde".António Matos, director do jornal agora controlado pelos espanhóis da Prensa Ibérica, aponta, além do factor televisão, um conjunto de outras razões que dificultam a viabilidade dos vespertinos: o prolongamento da jornada de trabalho, o aumento do tempo gasto no regresso a casa, ou o desaparecimento dos cafés.Servir pequenos-almoços à hora de almoçoA somar a este leque de factores, que evidenciam mudanças da própria natureza da sociedade, António Matos junta um que é, em seu entender, o grande calcanhar de Aquiles de um vespertino: os custos de distribuição. Enquanto, de manhã, os custos são a dividir por todos os clientes, à tarde, um só jornal teria que arcar com a totalidade. A diferença de custos anuais é significativa, como o mostra um exemplo aplicado a um jornal com as características d' "A Capital": com uma circulação de 14 mil exemplares, a distribuição matinal custa cerca de 180 mil contos/ano contra 280 mil contos/ano, se for feita ao princípio da tarde.Além disso, como o número de quiosques abertos à tarde é menor do que de manhã, a exposição em banca é inferior, o que tem óbvias consequências nas vendas. A crescente diminuição do número de ardinas também não ajuda a quem queira vingar no mercado da tarde. O peso da televisão - um "media" que exige ao consumidor menos esforço que o jornal e com funções alargadas de lazer - teve também um outro reflexo, difícil de contrariar por um jornal vespertino. Os assuntos previsíveis, como as conferências de imprensa, tendem a ser agendados em função dos telejornais da noite, o que aumenta o grau de dificuldade para quem tem que dar um tratamento jornalístico a algo que será lido na tarde do dia seguinte, quando a agenda dos "media" pode já estar dominada por outro assunto. "É como ter uma casa de pequenos-almoços e abri-la depois do almoço", diz António Matos, referindo-se a este tipo de dificuldade.Quer tudo isto dizer que os vespertinos estão, à escala global, condenados? É arriscado responder sim ou não. Mesmo com a concorrência e o carácter instantâneo dos audiovisuais e da Internet, em países como os Estados Unidos os vespertinos mantêm, ainda assim, um peso considerável. A tendência parece, de qualquer forma, ir no sentido de uma perda de influência.O "Editor & Publisher International Year Book" de 2001 dava conta de um aumento dos matutinos de 737 para 766 e de uma diminuição dos vespertinos de 760 para 727. É a primeira vez, desde que a revista começou a recolher dados, em 1919, que o número de matutinos é superior.Nos Estados Unidos, onde existiam 1480 diários, só um jornal passou, no período considerado, de matutino para vespertino, enquanto 28 fizeram o percurso inverso. Um dos que passou para a manhã foi o "Seattle Times". "Existe uma tendência para a leitura de matutinos. As pessoas estão a ler poucos jornais e escolhem aquele que podem receber primeiro, de manhã", diz Frank A. Blethen, da empresa que edita aquele jornal, citado pelo Observatório da Imprensa brasileiro. Se assim for, o que aconteceu em Portugal não terá sido caso isolado.