Um chuto de amor
No seu último CD, a dama "outsider" da country encharca-nos até aos ossos de solidão. "Essence" é desaconselhado a pessoas apaixonadas por alguém que acabou de as deixar.
"Essence", o último álbum de Lucinda Williams, é uma droga, um raio de um narcótico em forma de disco que se ouve com a mesma dependência que o álcool proporciona quando nos deixaram e estamos de rastos. É cem por cento melancólico, e belo e brilhante e admirável na mesma proporção. Depois de aberto, como uma fragrância fina, delicada e sensual, não mais deixa de se escutar. É depressivo, triste e lento, mas intenso e emocional. Lucinda larga as narrativas do anterior "Car Wheels On The Gravel Road" e abraça a fraseologia hipnótica de pequenas expressões que dizem tudo: "I envy the wind that whispers in your ear" sob o som solitário da guitarra bluesy de Bo Ramsey. Composto após o fim da relação de cinco anos com o baixista Richard Price, "Essence" canta as vulnerabilidades do estado de perda amorosa de forma tão personalizada e autobiográfica que quase incomoda. A cantora pensou em vários títulos para o disco: "Steal Your Love", "Out Of Touch", "Are You Down". Acabou por se fixar em "Broken Butterflies" até mudar para "Essence". Digamos que a palavra resume tudo o que o álbum quer transmitir. O amor é uma droga que Lucinda quer "chutar" na veia: "Baby, sweet baby, whisper my name, shoot your love into my vein." O desespero, a carência, a "ressaca" são totais: "I am waiting here for more, I am waiting by your door, I am waiting on your back steps, I am waiting in my car, I am waiting at this bar, I am waiting for your essence." Sussurro. Ao contrário da narrativa, da cor e da humidade sulista do anterior "Car Wheels On a Gravel Road", que alguns comparam a uma versão rock das novelas de Flannery O'Connor, tudo em "Essence" é minimalista, sussurrado, interiorizado. Está lá a dor toda, mas em pequenas frases ou em expressões repetidas 20 vezes, como "lonely girls" no tema do mesmo nome.O album é também mais espiritual do que o habitual, sobretudo em "Get right with God" e "Broken Butterflies". Nascida no Sul dos EUA, Lucinda navegou sempre entre o agnosticismo do pai, o poeta Miller Williams, a religião Metodista dos avós e a atmosfera generalizada de religiosidade na região."O meu pai usa muitas referências bíblicas nos seus poemas, Bob Dylan e Leonard Cohen também. Comecei a ler a Bíblia e cheguei a um ponto em que fiquei frustrada com o Deus zangado que encontrei no Velho Testamento. Mas tirei suficientes coisas para usar em 'Broken Butterflies'", explica (como muitos temas da obra de Lucinda, foi escrito sobre uma situação real, o fim da amizade com o produtor Gurf Morlix).Os temas, unidos pelo fio condutor do desencanto, incorporam outras jóias, da minimal e desesperada "Lonely girls", à poesia pura de "Blue" - "Go find a jukebox and see what a quarter will do/ I dont wanna talk, I just wanna go back to blue" -, passando por esse retrato do mundo citadino de desencontros entre a multidão que é "Out of Touch": "We speak in the past tense and talk about the weather." E o que dizer de "I Envy the Wind"? Sente-se a tristeza e a dor em cada verso, a voz chorosa de Lucinda cantando: "I envy the sun that brigthens your summer." O famoso perfeccionismo de Lucinda parece ter desaparecido na voragem do desgaste da relação com Richard Price, da necessidade premente de escrever (não compunha uma canção há cinco anos) e de uma confiança que até aí parecia não existir. Price mudou-se para a Florida e Lucinda compôs a maioria dos temas do álbum na mesa da cozinha, só. "Escrevi 14 canções no Verão passado. A princípio pensei, 'espera lá, que é isto'? É demasiado bom para ser verdade! Não posso ter escrito todas estas canções!", comentou. A verdade é que, em 1988, compusera "Passionate Kisses" e "The night's too long" na mesma voragem, na sequência do fim de um relacionamento e ao mudar de cidade. "Nessa altura, mudei para Los Angeles. Foi o fim de uma relação, uma nova cidade e o boom!"De todos os temas de "Essence", o único que caberia em "Car Wheels On The Gravel Road" é "Bus to Baton Rouge", regresso às memórias da infância, à casa da avó na Belmont Avenue, onde as camélias floresciam no jardim junto ao pântano das traseiras, mas a sala de estar permanecia fechada e o piano e o sofá tapados com um pano, para não estragar: "Ghosts in the wind that blow through my life, follow me wherever I go, I'll never be free from these chains inside, hidden deep down in my soul."open road. Lucinda nasceu há 48 anos em Lake Charles, no estado húmido e quente da Luisiana. Basta ouvir-lhe a pronúncia nasalada e arrastada, vê-la usar o chapéu de "cowboy", falar da Bíblia, de William Faulkner ou cantar sobre os campos de algodão "back home", como John Fogerty ou Tom Petty. O pai era professor de literatura e poeta, a mãe uma diplomada em música da Universidade da Luisiana. O divórcio dos pais, as mudanças de casa, de Jackson para Vicksburg, no Mississípi, de Atlanta para Macon, na Georgia, de Baton Rouge para New Orleans, na Luisiana, marcaram a infância de Lucinda, que aos seis anos começou a escrever os seus poemas. "Era uma miúda que estava sempre em casa. Enquanto as outras crianças brincavam lá fora, eu escrevia poemas e contos", conta. Em casa, o pai, o poeta Miller Williams, recebia outros nomes da escrita, como Flannery O' Connor, uma indesmentível influência nas letras de "Car Wheels On The Gravel Road", mas também Charles Bukowski e Allen Ginsberg. Lucinda terá começado a interessar-se pela música aos 12 anos, quando Bob Dylan lançou "Highway 61 Revisited". "Teve um impacto profundo em mim, tanto do ponto de vista musical como literário", conta. Comprou uma viola, passou a cantar Joan Baez, Leonard Cohen e Dylan e foi suspensa da escola secundária no 10º ano por ter participado numa manifestação pelos direitos civis dos negros. Outras influências: Jim Morrison, os Byrds, os Buffalo Springfield, Neil Young, Van Morrison, o Delta blues da região onde cresceu. "Ouvia Memphis Minnie, Robert Johnson, Howlin' Wolf, Mississippi John Hurt, Mississippi Fred McDowell. Quanto mais obscuros, melhor. E cresci também a ouvir John Coltrane, Chet Baker, Dinah Washington e Ray Charles." Não esquecer a country, claro, sobretudo Loretta Lynn e Hank Williams.Ainda entrou duas vezes para a Universidade do Arkansas, mas largou tudo pela "open road", a estrada, mito que não estafa nunca. Andou por Los Angeles e Nova Iorque, mas fixou-se nesse berço musical extraordinário que foi, e continua a ser, Austin, no Texas, "Live Music USA". O Texas, diga-se, é um Estado que vota no Partido Republicano, mas a cena musical da capital é tudo menos conservadora. Pelos clubes e honky-tonks da cidade, há talento aos pontapés. Naquele tempo, andavam por lá alguns dos melhores compositores desse terreno maravilhoso que combina a folk, a country, o rock, o blues e a que chamam agora pomposamente "Americana": Lyle Lovett, Townes van Zandt, Guy Clark, Nanci Griffith, Jimmie Dale Gilmore, Joe Ely... "Ramblin' On My Mind", o primeiro trabalho de Lucinda, apresenta-a ainda em busca de uma identidade, com versões de temas de blues e country. A voz nasalada, carente e arrastada, de quem afoga no Bourbon a perda do último namorado, pega na viola e vai cantar exactamente esse sentimento, já lá está, embora ainda não com a intensidade de "Sweet Old World", talvez uma das mais belas canções sobre suicídio. "Happy Woman Blues", em 1980, é o seu primeiro grande trabalho, embora só em 88, uma insegura Lucinda, sempre muito crítica do seu trabalho e da sua voz, grave a primeira obra-prima: "Lucinda Williams". Os dois temas mais ouvidos são "The nigth's too long" e "Passionate Kisses", mais tarde celebrizado por Mary Chapin Carpente, mas todo o álbum é já um hino à obsessão pelo desamor, pelas coisas do coração. Quatro anos depois, surge "Sweet Old World", com a devastadora canção que dá nome ao álbum: "Viste o que perdeste quando deixaste este mundo, este doce e velho mundo? Alguém a chamar o teu nome, alguém tão quente, agarrado ao teu braço, pensaste que não valias nada?" O CD inclui clássicos da paixão ("Something about what happens when we talk" ou "Hot blood"), da segunda oportunidade ("Prove my love") e velhas histórias do Sul ("Pineola")."Car Wheels on a Gravel Road", viagem ao Sul profundo de Faulkner e Flannery O'Connor, demoraria seis anos a burilar, Lucinda entregue ao perfeccionismo, à regravação de canções que retratam o cenário de sempre, como "Lake Charles", mas também os temas obsessivos de sempre, como em "Joy" ou "Right in time". O resultado é um álbum adulado pela crítica, presente nas listas dos melhores discos de 1998, vencedor de um Grammy e a consagração, finalmente, da "songwriter of America", no entender da "Time".Agora, depois de "Essence", Lucinda abraça a "tournée" com a mesma franqueza com que escreve e se assume nas letras. Em palco, é a sulista de sempre, chapéu de "cowboy" - "Temos de ter orgulho nas nossas raízes", afirma. Na country, a mesma "outsider": "Não me sinto parte da indústria musical de Nashville, não estou definitivamente ligada a esse mundo, Nashville é muito certinha, acho que sou considerada uma espécie de 'outlaw' como Steve Earle. São uns puritanos." Não gosta de ver a CMT (Country Music Television) e não ouve as rádios country. "Não quero ser identificada com o que passa hoje nessas rádios, para mim a country é Hank Williams e Loretta Lynn." Yeah, para nós também.