Tolkien, o filólogo que descobria histórias
Se alguma vez tivesse sido pedido a J.R.R. Tolkien que se descrevesse numa só palavra, essa palavra teria sido com certeza 'filólogo'. Foi a paixão pelas linguagens que definiu o rumo da sua vida, da mesma forma que o levou à escrita de "O Senhor dos Anéis", como antes de "O Hobbit", como antes de tudo isso, de "O Silmarillion". Tolkien quis, acima de tudo, construir um mundo onde fosse suficientemente verosímil utilizar as linguagens que criou ao longo de toda a sua vida. E com isso fez nascer uma das epopeias mais ricas e vívidas que a literatura jamais conheceu. A primeira parte da saga chega aos écrans portugueses esta semana.
A vida de John Ronald Reuel Tolkien podia ser resumida numa frase essencial da biografia escrita por Humphrey Carpenter: "E depois disto de certa forma poderá dizer-se que nada mais aconteceu". O "isto"de Carpenter é a nomeação de Tolkien para dirigir a Cadeira de Anglo-Saxão na Universidade de Oxford, em 1925, apenas com 33 anos. Com efeito, todos os acontecimentos excitantes na vida de Tolkien - o material a que normalmente os biógrafos deitam a mão - tiveram lugar antes disso.J.R.R. Tolkien - ou apenas Ronald como a ele se dirigiam os amigos e familiares mais próximos - nasceu a 3 de Janeiro de 1892, em Bloemfontein, na África do Sul, para onde o pai emigrara três anos antes, alimentando perspectivas de melhores oportunidades profissionais. Arthur Reuel Tolkien descendia de uma família de remotas origens alemãs - Tolkien vem do germânico Toll-kühn, que significa 'tolamente corajoso' ou 'estupidamente esperto' -, cujo grande negócio tinha sido a manufactura de pianos, mas a empresa fora vendida anos antes e o pai encontrava-se então praticamente falido. Sem pecúlio nem fortuna, Arthur Tolkien depressa percebeu que só fora de Inglaterra encontraria meios para sustentar uma família. E ele queria mesmo poder sustentar uma família, pois já estava enamorado de Mabel Suffield há algum tempo; declarou-se poucos meses antes de partir para a África do Sul.A aposta revelou-se ganha: não passara nem um ano e Arthur Tolkien já detinha uma bela posição num dos mais importantes bancos sul-africanos. Poucas semanas depois de completar 21 anos, Mabel está já a bordo do navio que a levará de Birmingham até à África do Sul onde, cerca de três meses mais tarde, em Abril de 1891, casará com Arthur.Só que a vida na África do Sul, com as suas paisagens áridas e um calor insuportável, não lhe é agradável. Os nascimentos de John Ronald e de seu irmão, Hilary, cerca de dois anos mais tarde, ainda intensificaram um desconforto maior em Mabel, e ela e as crianças viajaram em Abril de 1895 para Birmingham, sem o marido. Nunca mais o viu. Uma febre reumática com recuperações e recaídas acabou por matá-lo em 15 de Fevereiro de 1896. A infância de Ronald foi dividida entre a vida rural de Sarehole, onde viveu durante alguns anos com a mãe e o irmão, e o ambiente citadino de Birmingham onde foi frequentar a Escola Rei Eduardo. Foi ainda marcada por um acontecimento que afastou Mabel e os filhos de todo o resto da família: em 1900, ela converteu-se à Igreja Católica e daí em diante tanto Ronald como Hilary foram educados de acordo com a fé de Pio IX, tendo ambos permanecido católicos devotos toda a vida. Tal aconteceu, em muito boa parte, porque os dois rapazes - e especialmente o mais velho - acreditavam que a morte prematura da mãe, em finais de 1904 devido a diabetes, se devia profundamente ao desgaste que lhe havia sido causado pela desaprovação e afastamento a que família, dela própria e do marido, a tinha votado. O facto é que os dois rapazes são deixados órfãos, ainda mal saídos da infância e sem qualquer forma de subsistência. É aqui que entra em cena Francis Morgan, o padre da paróquia frequentada por Mabel, um homem de traços rígidos, meio-espanhol e meio-galês, que toma a seu cargo o sustento e educação de Ronald e Hilary.Com apenas 12 anos já John Ronald mostrava possuir um extraordinário talento linguístico: dominava com à vontade o latim e o grego e tornara-se mais do que competente em uma série de outros idiomas, tanto modernos como antigos, nomeadamente o gótico e, mais tarde, o finlandês e o islandês. Mais. Começava aí a "balbuciar" as primeiras ideias de criação de linguagens, para seu próprio divertimento, como o "Animalic" (um idioma construído a partir de nomes de animais) e o "Nevbosh" (ou Novo Absurdo). Nos últimos anos na escola, uma outra complicação surgira na vida de John Ronald. Entre os hóspedes da casa que ele e o irmão também habitavam, vivia uma rapariga chamada Edith Bratt. Ronald tinha 16 anos e ela 19 quando entre os dois nasceu uma amizade que aos poucos, se foi aprofundando. Desagradado, o padre Morgan proíbe Ronald de voltar a ver e até de se corresponder com Edith até fazer 21 anos. Ordem a que ele obedece estoicamente. "Tive que escolher entre desobedecer e causar sofrimento (e enganar) um tutor que fora um pai para mim, mais do que muitos pais de verdade, mas sem quaisquer obrigações, e deixar o romance em suspenso. Não me arrependo da minha decisão, apesar de tal ter sido muito difícil para a minha amada. (...) Durante quase três anos não vi nem tão pouco escrevi à minha amada. (...) Na noite do meu 21º aniversário escrevi de novo à tua mãe - era 3 de Janeiro de 1913. E a 8 de Janeiro fui ao seu encontro, ficámos noivos, e informei a família causando uma enorme surpresa", conta J.R.R. Tolkien numa carta dirigida ao filho Michael, em Março de 1941, a propósito do casamento e das relações entre os sexos.Ronald seguiria em 1911 para Oxford, onde permaneceu até 1913 na Faculdade de Exeter, imerso no estudo dos Clássicos, do Anglo-Saxão (ou Inglês Antigo), dos idiomas germânicos, do galês e do finlandês. O resultado geral não foi brilhante - toda a conturbação do reatamento de relações com Edith teve a sua influência - mas, ainda assim, Ronald recebeu nota máxima e honras de distinção em filologia. Foi isso que o levou a mudar o curso dos seus estudos para a Faculdade de Língua e Literatura Inglesa e é na cadeira de Anglo-Saxão que ele vem a descobrir o poema "Crist of Cynewulf", cujos versos logo o fascinaram - "Eálá Earendel engla beorhtast/Ofer middangeard monnum sended" ("Avé Earendel, mais brilhante dos anjos, até à Terra-média enviada aos homens") - e mais tarde o inspiraram nas primeiras tentativas de criar um mundo de beleza ancestral, um mundo que viria a chamar-se Arda e que integra a Terra-média, onde se desenrolam "O Hobbit" e "O Senhor dos Anéis".Edith converte-se ao catolicismo e enquanto o casal vai ficando cada vez mais próximo, a guerra rebenta, em Agosto de 1914. Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, J.R.R. Tolkien não corre a alistar-se, antes permanece em Oxford onde finalmente, em 1915, obtém a sua licenciatura de "primeira-ordem". É ao longo destes anos que desenvolve o seu trabalho de criação de linguagens, especialmente aquela a que acabou por chamar "Quenya", para além de ocupar muito do seu tempo em tentativas poéticas.Acaba por alistar-se nos Fuzileiros de Lancashire pela mesma altura em que trabalhava na ideia de Earendel - que ele imaginava ser um marinheiro transformado em estrela - e das suas viagens. Durante vários meses Tolkien permaneceu em Inglaterra até que recebeu a notícia de que embarcaria em breve para França, e ele e Edith casam em 22 de Março de 1916. Não muito depois é enviado para a Frente Oeste, a tempo de ser incorporado para a Batalha do Somme. Ao fim de quatro meses nas trincheiras, Tolkien sucumbe à doença a que os soldados se referiam como "febre das trincheiras" (uma espécie de infecção tifóide muito comum em situações de falta de condições sanitárias), e ainda em Novembro desse ano é mandado de volta para Inglaterra, onde fica hospitalizado quase até ao Natal.Durante esses dois últimos meses de 1916, apenas um dos antigos companheiros do "T.C.B.S." havia sobrevivido à guerra. Parcialmente em memória deles, mas também como reacção às experiências por ele próprio vividas em combate, Tolkien começou a dar forma às suas histórias logo no ano seguinte. Foi este ordenamento de ideias que resultou no "Livro dos Contos Inacabados" (publicado postumamente), no qual já surgem - ainda que na sua primeira forma - algumas das principais histórias de "O Silmarillion": as lendas dos elfos, com as suas linguagens próprias, e também os contos de Túrin e de Beren e Lúthien, este último inspirado numa ocasião em que Edith dançou para Ronald, durante um passeio ao campo, numa clareira dos bosques perto de Roos. Daí em diante Ronald passou a ver Edith como Lúthien e a si próprio como Beren. O primeiro filho do casal, John Francis (mais tarde Padre John Tolkien), nascera, entretanto, em Novembro de 1917.Quando o Armistício é assinado, em Novembro de 1918, Tolkien estava a tentar arranjar um emprego académico e por alturas da sua desmobilização já fazia parte da equipa que havia de editar o Dicionário de Inglês de Oxford. Ao mesmo tempo que desenvolvia o seu trabalho de filólogo, dava a conhecer publicamente uma das histórias do "Livro dos Contos Inacabados", lendo-a para um grupo de amigos e companheiros de academia que mais tarde haviam de instituir-se como os "Inklinks", grupo que incluía C. S. Lewis (autor das "Crónicas de Narnia", um clássico da literatura infantil), que viria a tornar-se um dos amigos mais íntimos de Tolkien.O trabalho no dicionário não prendeu as atenções de J.R.R. Tolkien durante muito tempo. No Verão de 1920 já ele se candidatava, e com êxito, ao posto de professor assistente de Língua Inglesa na Universidade de Leeds. Aí continuou a escrever e a redefinir "O Livro dos Contos Inacabados", assim como a desenvolver as suas línguas élficas, a par do trabalho académico e da sua pesquisa no campo da filologia. E então, em 1925, o cargo de Professor de Anglo-Saxão da Universidade de Oxford ficou vago. J.R.R. Tolkien candidatou-se e foi aceite."E depois disto de certa forma poderá dizer-se que nada mais aconteceu", recorda-se. Tolkien continuou o seu trabalho como professor e estudioso da língua e literatura inglesa medieval em Oxford, especializando-se em Anglo-Saxão (ou Inglês Antigo) e Inglês Médio, e dando as suas aulas, como sempre, no seu estilo arrebatado e articulação quase indecifrável. Criou os seus quatro filhos - John Francis, Michael Hilary, Christopher Reuel e Priscilla - para os quais ganhou o hábito de escrever, todos os anos pela época natalícia, cartas ilustradas por si próprio e em que assinava como Pai Natal (uma selecção dessas cartas foi publicada em 1976 com o título "The Father Christmas Letters"). E, claro, escreveu os seus mais proeminentes livros. Primeiro "O Hobbit", publicado em Setembro de 1937 e cuja primeira edição já estava totalmente esgotada por alturas do Natal desse mesmo ano. E depois "O Senhor dos Anéis", escrito ao longo dos 12 anos seguintes mas que só conheceu edição, em três volumes, entre 1954 e 1955, era Tolkien já um sexagenário. Ambos os livros aparecem profundamente alimentados pelas lendas que Tolkien escrevera - que continuava a escrever e reescrever e que continuaria a reescrever durante mais alguns anos - na que considerava ser a sua obra-maior: "O Silmarillion".Recebido por uma crítica dividida - chamaram-lhe "concepção genial" mas também "esforço pueril e inútil" -, "O Senhor dos Anéis" já foi lido por bem mais de 100 milhões de pessoas nos últimos quase cinquenta anos, e está traduzido em 25 línguas diferentes. Postumamente Tolkien foi eleito "Autor do Século" e "O Senhor dos Anéis" foi votado como o "Livro do Século". Isto em três escrutínios diferentes realizados em Inglaterra em 1996 e 1997.As principais publicações puramente académicas de Tolkien foram uma edição da lenda arturiana "Sir Gawain and the Green Night" (1925) e o seu ensaio sobre o poema "Beowulf" (1936), o qual continua a ser aceite como o mais significativo trabalho académico sobre aquela obra. J.R.R. Tolkien reformou-se da Universidade de Oxford em 1959, depois de ter dirigido os departamentos de Anglo-Saxão e Língua Inglesa. Permaneceu toda a sua vida um devoto cristão e abnegado católico e morreu, cerca de dois anos depois da sua mulher, em 2 de Setembro de 1973, tinha então 81 anos. Ele e Edith estão enterrados juntos, numa tumba única, na secção católica do Cemitério de Wolvercote, nos subúrbios a norte de Oxford. Na pedra tumular pode ler-se: Edith Mary Tolkien, Lúthien, 1889-1971 e John Ronald Reuel Tolkien, Beren, 1892-1973."[Tolkien] Não teve quaisquer casos extra-matrimoniais, nenhumas bizarrias sexuais, nenhum escândalo, estranhas acusações ou envolvimentos políticos - nada, de certa maneira, a que um simples biógrafo pudesse deitar os dentes", descreve Tom Shippey (na obra "J.R.R. Tolkien-Author of the Century"), também ele um filólogo de formação e professor de inglês e literatura medieval nas universidades de Leeds e Oxford. Mas o que aquela frase, "E depois disto de certa forma poderá dizer-se que nada mais aconteceu", perigosamente pode deixar de fora, como o próprio Humphrey Carpenter alerta, é a vida interior, a vida da mente, o mundo presente no trabalho de Tolkien, que constituíam também - e ele recusava-se a fazer a distinção - o seu passatempo, o seu divertimento privado, a sua paixão.