Só voa quem se atreve a fazê-lo
É preciso ter os olhos bem abertos para detectar no contido cenário de "História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar", o espectáculo do Teatro Meridional que hoje é estreado no Balleteatro Auditório em mais uma escala do PoNTI 2001, as pistas que servem para chegar sem atalhos ao centro de gravidade da peça: é de objectos em suspensão, como a cadeira, a máquina de escrever, o leme, o livro e o trombone que compõem uma cenografia lacónica, que os encenadores Natália Luíza e Miguel Seabra prometem tratar. Numa leitura fiel do universo moral de Luís Sepúlveda que recupera as boas intenções na altura certa, garante a responsável pela dramaturgia.Depois de ter acolhido em 1999 "A Varanda do Frangipani", uma bem sucedida incursão do Teatro Meridional na bibliografia de Mia Couto, a direcção do PoNTI decidiu reincidir no convite à companhia e co-produzir o espectáculo que hoje se inaugura. Que é também uma reiteração de alguns dos traços-chave do Meridional: é novamente "uma teatralidade sustentada no desempenho do actor", para usar as palavras de Miguel Seabra, que sobe ao palco do Balleteatro. Cabe ao elenco instalar sem redundâncias um universo de fábula - e é exactamente por isso que nada no cenário perturba a transparência eloquente de interpretações com a dose certa de expressionismo e que os movimentos das personagens parecem coreografados ao milímetro, num trabalho que teve a mão de Ana Rita Barata e do instrutor de Taiji Qigong, Pedro Rodrigues. Do texto do chileno Luís Sepúlveda - que ainda há pouco tempo aproveitou a passagem pelo Porto, a convite do ciclo "Sob Influência", para explicar como nasceu esta história de gaivotas e gatos - à versão encenada, o caminho foi percorrido à maneira de uma estafeta, em que o testemunho passou do autor para o tradutor Pedro Tamen, deste para Nuno Artur Silva, responsável pela adaptação, e só então para Natália Luíza, que afinou a dramaturgia.Em cena, ensaiando um teatro muito físico sem abrir mão da palavra, entram então a figura gorducha do gato Zorbas, um ovo branco e redondinho de onde há-de sair a gaivota Ditosa, o macaco Matias e um quarteto de gatos cheios de tiques. Entre todos há-de criar-se a possibilidade de uma parábola sobre a convivência entre espécies divergentes que parece ser a única saída para a longa "história da humana predação do planeta", frisa Natália Luíza. Onde cabem palavras-valores como a generosidade e o respeito, mas também trocadilhos e citações do universo felino que cumprem a vocação transgeracional do texto. "Não é uma peça para crianças", esclarece Natália Luíza, "mas é certamente uma história que não tem idade. E que servirá também os adultos que têm o coração impoluto ou uma zona de si próprios em que ainda há sonhos". A ambição, muito assumida, de "tornar a história legível a vários níveis, sem infantilizar", cria zonas de humor quase universais, mas não impede que, aqui e ali, uma vocação metatextual se ofereça, com uma piscadela de olho, ao público adulto, entre deambulações felinas. A figura do autor que reescreve a história e a força a um "rewind" corrector, fisicamente insinuada através de um senhor de fato-macaco, à maneira de um operário das palavras ou de uma instância "ex-machina" de supervisão da narrativa, é uma dessas presenças de terceiro grau que resgatam o texto da infantilização iminente. A moral da história - "só voa quem se atreve a fazê-lo" - é repescada sem complexos de paternalismo pelo Teatro Meridional. "Esta possibilidade que todos temos de nos vigiarmos a tolerância parece-me mais essencial do que nunca. Porque todos defendemos a compreensão e o respeito, mas passamos a vida a falhar. Vejo esta história como uma proposta de crescimento humano. É evidente que passa valores - mas vivemos um tempo em que as pessoas precisam de moralidades. E nós, os contadores de histórias, temos obrigação de contar histórias que sirvam o seu tempo e o seu mundo", nota Natália Luíza. Depois de uma curta estadia no Porto, que se interrompe já no domingo, "A História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar" segue para Lisboa, onde estreará na Comuna, a 9 de Janeiro.