Lições de vida
Talvez o erro maior de qualquer crítico seja a busca da perfeição. Contentemo-nos apenas em ser homens e mulheres e em deixar que a vida flua. Sem mais.
De como duas ou três considerações banais sobre a personalidade de um esteta e a sua relação com os outros pode construir um enredo.É este o princípio sub-reptício que subscreve "Sem Antes Nem Amanhã". À superfície, temos um homem que toda a vida experimentou a diversidade culinária, transformando as suas sucessivas experiências palatais em belíssimos, garante-nos uma das personagens, textos críticos; agora, no tempo desta narrativa, sabendo que lhe faltam poucas horas de vida, este homem busca na sua memória gastronómica - parece que é a única que tem - o prato, ou a matéria, que dê essencialidade a toda a sua existência.Numa alternância imposta na sucessão de capítulos, vamos conhecendo uma personalidade contraditória que ora se auto-revela de uma sensibilidade superior na apreciação da diversidade culinária, ora é descrito como um homem insolente e em débito amorável com todos os que o rodeiam.Para quem imagina a arte gastronómica como um apurado e partilhado exercício erótico, encontrará aqui a arrogância de um ser passivo, exigindo e medindo os requintes com que o servem. Mesmo que pareça terno no modo como descreve a cozinha das avós: "O que fazia a sua arte ser tão extraordinária não era a força do carácter nem a vitalidade, como também não era o seu espírito simples, o gosto pelo trabalho bem feito ou a austeridade. Creio que, sem pensarem nisso, elas tinham a consciência de estar a desempenhar uma missão nobre na qual eram extraordinárias, e que só aparentemente podia ser considerada subalterna, material ou apenas utilitária. Sabiam bem que, apesar de todas as humilhações sofridas, não por serem esta ou aquela pessoa precisas mas pela sua condição de mulheres, quando os homens chegavam a casa e se sentavam à mesa, era aí que começava a manifestar-se o poder que elas, mulheres, detinham [...] Elas dominavam os seus homens não através das amarras da administração doméstica, dos filhos, da respeitabilidade ou mesmo da cama - mas pelas papilas, e isso de uma maneira tão efectiva como se os tivessem metido em jaulas ou eles, de sua própria vontade, se tivessem lá enfiado" (pp. 25/6). Este discurso, convenhamos, não acrescenta muito à mitologia que confunde instinto protector e maternal com sensualidade, erro de apreciação em que também o próprio protagonista cai: "[...] uma cozinha que, por vezes, não é refinada, que tem sempre esse lado 'familiar', quer dizer consistente e alimentício, feito para 'encher o bandulho', mas que, no fundo e sobretudo, é de uma enorme sensualidade, e que nos faz compreender que quando falamos de 'carne' não é por acaso que essa palavra evoca conjuntamente os prazeres da boca e os do amor. A cozinha que elas faziam era o seu atractivo, era onde se manifestava o encanto e a sedução que elas detinham [...]" (p. 27) E o avô, sabia disso? Nem o avô, nem, pelos vistos, Anna, a mulher do protagonista, a qual, não dominando qualquer género de culinária, se vê remetida a uma inexistência de afegã sob domínio taliban: sem fala, sem reclamações, sem sombra, sem som.Eis o esteta. O que busca na arte não o prazer dela, mas a sua impecabilidade. Um crítico feroz que não perdoará uma pitada de sal a mais, ou um grânulo de açúcar a menos, e que, em paradoxo, sintetiza a essência do gosto condimentado, do paladar texturado, do sabor perfumado.Na busca, algo desesperada, que, às portas da morte, empreende, desfilam a carne, o peixe, os crustáceos, uma variedade de molhos, o pão, uma multiplicidade de saladas e seus ingredientes hortículas, sobremesas doces e frutadas e, num momento maior de louvor à mestria culinária, o cru, o peixe cru, cuja degustação não se compadece com modismos ocidentais. Há arte na sua preparação: "[...] só a intuição não chega: é preciso também habilidade para cortar, discernimento para escolher o melhor e carácter para recusar o medíocre. [...] o chefe Tsuno, chegava ao ponto de, a partir de um salmão gigantesco, apenas extrair um pedaço de tamanho irrisório. [...] Uma pequena parcela de matéria fresca, sozinha, nua e crua: perfeita." (p. 46) E, depois, o prazer da prova: "Ao verdadeiro sashimi acontece uma coisa que fica entre a mastigação e o desfazer-se na língua. Pede uma mastigação lenta e leve, cuja finalidade não é fazer o alimento mudar de natureza, mas saborear-lhe a consistência medulosa e aérea. Meduloso, sim, porque não é só macio ou flexível. O sashimi, poeira de veludo na fronteira com a seda, tem um pouco dos dois e, na alquimia extraordinária da sua essência vaporosa, conserva uma densidade leitosa que nem as nuvens têm." (p. 48) E por aí adiante.Mas não é isto que o moribundo procura. Tudo isto foi ele encontrando pela vida fora, creditando como privilégio da sua busca incessante pela perfeição. Quem imaginaria, então, que num repente se faça luz no seu espírito e que descubra que, o que afinal sempre procurara como expoente máximo do seu gosto palatal, leva o nome de chouquettes - não tanto por serem uns simples bolos, mas porque os deseja não de pastelaria, mas industriais, vendidos em supermercado, de massa elástica e molengona, contrariamente ao "seu carácter único [que] vem do facto de ser macio sem ser fraco, e firme sem rigidez." (p. 114/5).A vida só vale pela sua simplicidade. "[...] Eu tinha quinze anos, e saía do liceu esfomeado, com a fome que se pode ter nessas idades, uma fome sem discernimento, selvagem e, contudo, sentindo uma calma da qual só hoje me lembro, e que constitui precisamente uma das maiores carências de toda a minha obra. Toda a minha obra que eu hoje trocaria sem lamentos, sem sombra de remorso ou vestígio de nostalgia, por uma chouquette de supermercado." (p.115) Tudo o mais é redundante.