Jérôme Bel terrible, mas não enfant
Estão lá os ecos do mundo exterior, canções dos Queen e de Lionel Richie, voos sem destino, a transparência dos corpos e uma ostensiva individualidade. "The Show Must Go On" é uma meditação sobre a sociedade contemporânea pós-capitalista - o verdadeiro "show" realista que continua intocável. De Jérôme Bel, a quem chamam o "enfant terrible" da dança europeia.
"Eu preciso de teeeeeeeeeeeeempo". Jérôme Bel, um dos expoentes da dança contemporânea europeia, diz que não gosta de falar, não gosta de escrever, só gosta de coreografar. Nos últimos meses, a sua mais recente peça coreográfica, "The Show Must Go On", que será apresentada no PoNTI entre 12 e 14, no Teatro Nacional S. João, levou o criador francês a uma rodopiante digressão internacional. Dos Estados Unidos à Alemanha - nomeadamente a Munique, onde actualmente se encontra -, Bel tem recolhido gratificantes comentários da crítica, pelo que, diz, "tenho dado entrevistas todas as semanas". Ao Y acedeu responder a algumas questões por e-mail ("sozinho, noite adentro, no meu quarto de hotel"). "É uma questão de preservar a minha vida privada", explica, insinuando que não tem conseguido reservar algum tempo para si próprio. "The Show..." "oblige".Estreado no Théâtre de la Ville, em Paris, em Janeiro, "The Show Must Go On" é o exclusivo espectáculo de dança que assinala o último mês do PoNTI, mas esta actuação solitária num programa repleto de teatro não causará qualquer desalento junto do público de dança. O privilégio de assistir a uma criação do coreógrafo - uma iniciativa, aliás, apontada por Nuno Cardoso, director do Auditório Nacional Carlos Alberto (ANCA) - preenche qualquer alegada lacuna e encerra o cartaz de dança do festival internacional da melhor maneira. Isto, a julgar pelo inesquecível espectáculo "Shirtologie", apresentado em 1997 no Centro Cultural de Belém.Cerca de três anos volvidos sobre a sua última peça, sugestivamente titulada "O Último Espectáculo", Jérôme Bel contrariou os seus próprios projectos - "naquela altura pensei em desistir da produção de trabalhos artísticos" - e decidiu prolongar a sua actividade no campo performativo com uma peça que não poderia ter um título mais adequado. "The Show Must Go On" não absorve apenas as linguagens particulares do espectáculo, como também se inscreve numa expressão que Bel prodigaliza. "É uma frase comum que costumo usar no dia-a-dia". Interpretada por 18 artistas que, por via da sua "inteligência e da sua magnífica generosidade", mostram-se pródigos num humor desconcertante, a coreografia imprime nos corpos, nos gestos e nos movimentos uma mancha de caracteres dos quais derivam todas as emoções e sentimentos. Tudo se eleva e rasga nestes corpos que parecem voar em sentido desconhecido. E sobre esta desenvoltura que se espraia ao longo de hora e meia imperam as sonoridades da pop - "canções que toda a gente conhece, desde o Porto até Kandahar", explica Bel, enumerando nomes como o de David Bowie, Queen, Lionel Richie ou Nick Cave.Ferramenta do pensamento. Muitos dos artistas que habitam esta dramaturgia corporal não são bailarinos nem actores. Por hábito, Jérôme não escolhe os participantes das suas produções: "Eles é que me escolhem a mim", diz, justificando que não se sente apto para decidir "quem é bom ou quem é mau". Por isso, "The Show Must Go On" integra estudantes, professores, desempregados, cineastas, coreógrafos, encenadores, críticos de arte ou "pessoas depressivas". "Os seus namorados, irmãs e esposos também se juntaram a nós porque assistiram a muitos dos ensaios em Amesterdão", acrescenta, "e agora compreendo porque é que é tão importante trabalhar com pessoas das mais diversas áreas: os nossos confrontos e as nossas trocas tornam-se mais valiosas". Num espectáculo que, a partir de certo momento, se emancipa, vivendo e exercendo um poder por si próprio, "The Show..." assume-se como uma proposta, ou melhor, uma problematização de um tema particular que joga com a imaginação do público, permitindo-lhe uma liberdade que possibilita a cada pessoa criar a sua própria "performance". "Este espectáculo não pretende ser um manifesto ideológico, mas uma ferramenta para o pensamento; não defende qualquer crença ou verdade". Recusando algum tormento que lhe faça sentir a força inútil dos outros (público), Bel salienta que o espectáculo realiza-se verdadeiramente no confronto entre duas entidades: os artistas e o público. "O público é uma espécie de co-produtor da peça, por isso nenhuma das minhas coreografias alcança a sua plenitude sem a colaboração dos espectadores. Só consigo compreender realmente os meus espectáculos durante as actuações. Antes disso, ando às voltas com dúvidas e questões. Ao vivo, a audiência dá-me respostas e ajuda-me a entender o que fiz". A exemplo dos métodos exercidos nas suas anteriores coreografias, também "The Show..." não é propriamente o resultado de um processo colectivo de criação. Partindo de ideias já delineadas, o coreógrafo promove, no entanto, conversas com os artistas, de forma a recolher comentários e novas soluções. "Se eles não concordarem com as minhas ideias, tendo convencê-los ou procuro uma outra forma de realizar aquilo que penso". Contudo, "muitas vezes são eles que descobrem o que pretendem fazer e esta é uma das fases de que gosto mais porque eles trabalham em vez de mim", declara Bel. Admite que é "muito preguiçoso". No processo final, porém, é ele quem faz a depuração da peça, avultando neste "The Show..." uma vincada individualidade. "Detesto a alienação comunitária". Ancorado em imagens transparentes, o espectáculo conflui numa estética minimalista que liberta acções e movimentos simples. Poder-se-á, então, afirmar que "The Show..." cria uma espécie de "espelho da audiência", concorda Bel. No entanto, o facto de o coreógrafo confessar que cria "trabalhos muito simples no palco", não significa que não goste de produzir "coisas complicadas"."Primeiro, tenho de admitir que sou muito preguiçoso e que produzir criações simples é muito menos cansativo". Fascinado pelo virtuosismo de alguns coreógrafos, admira o trabalho de William Forsythe, criador "que consegue fazer coisas simples, mas também outras extremamente complicadas". "Rapaz sortudo!", exclama Bel, anunciando logo a seguir que irá coreografar, em 2005, uma peça clássica para o Ballett da Ópera de Paris. Afinal, também sabe fazer coisas complicadas.Finalmente, sobre a "etiqueta" que lhe imprimiram - o "enfant terrible" da dança europeia -, mostra-se mais irónico: "Este rótulo foi inventado por jornalistas idiotas e estúpidos. 'Terrible' está ok, mas 'enfant' é 'bullshit'".