Guterres fez jogo duplo com a alcoolemia
O primeiro-ministro, António Guterres, não só sabia como concordou com que a taxa 0,2 gramas de alcoolemia por litro de sangue como limite máximo em termos de condução automóvel fosse reposta em 0,5 gramas por iniciativa do grupo parlamentar do PS.Guterres participou assim numa jogada de duplicidade política que envolveu o Governo e o Parlamento e que foi posta em marcha na quarta-feira passada, numa reunião que envolveu deputados e membros do Governo e que culminou ontem, no hemiciclo, logo após a aprovação final do Orçamento do Estado, quando os deputados passaram as últimas votações antes das autárquicas, e aprovaram a suspensão da taxa de 0,2 gramas.De acordo com a reconstituição feita pelo PÚBLICO, a decisão foi tomada e a encenação acordada na quarta-feira, numa reunião que juntou o ministro da Presidência e das Finanças, Guilherme d'Oliveira Martins, o ministro da Administração Interna, Nuno Severiano Teixeira, o secretário de Estado da Administração Interna, Rui Pereira, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, José Magalhães, o líder parlamentar, Francisco Assis, e os dois vice-presidentes da bancada que se ocuparam deste caso e da defesa dos 0,2 gramas, Barros Moura e Ana Catarina Mendonça Mendes.Nessa reunião, Assis informou o Governo que a situação se tornava insustentável no partido e na bancada parlamentar, que cerca de 80 por cento dos deputados eram contra a nova taxa, que no partido as pressões por causa das autárquicas eram imensas e atingiam o trabalho das candidaturas, havendo quem temesse pelos resultados. Logo, só havia uma solução - obedecer à vontade da maioria.O ministro responsável pela medida, Nuno Severiano Teixeira, ainda protestou, havendo quem garanta que ele ficou furioso com o que se estava a passar. Mas os relatos são unânimes na afirmação que o ministro concordou com a decisão e aceitou entrar no jogo duplo. Por sua vez, Guilherme d'Oliveira Martins, falando em nome do primeiro-ministro, garantiu que Guterres concordava e aceitava que o PS passasse a falar a duas vozes, para agradar a dois eleitorados e assim resolver o problema da alcoolemia, perante o qual estava colocado em vésperas de eleições.E assim foi feito. O Governo insistiu em que era a favor dos 0,2 gramas, quer através de Severiano Teixeira, quer do próprio Guterres. O grupo parlamentar, por seu lado, avançou com o processo parlamentar de suspensão, de modo a que tudo ficasse pronto antes das autárquicas. E na comissão parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Osvaldo de Castro protagonizou o processo que levou à aprovação da suspensão, na especialidade, na quinta-feira à hora do almoço.Na quinta-feira à noite, foi a vez de o Governo aprofundar a dramatização da sua interpretação nesta história. O Conselho de Ministros aprova um comunicado onde diz que é a favor dos 0,2 gramas, mas ao mesmo tempo afirma respeitar a iniciativa da Assembleia da República. À 1h00 da manhã de ontem, o ministro adjunto António José Seguro falou aos jornalistas e afirmou a posição do Governo de concordância com a taxa de 0,2.O líder parlamentar, Francisco Assis, soube disto, bem como que o Governo se preparava para anunciar na manhã de sexta-feira, como reacção à suspensão da taxa, que estaria disponível para, através de decreto-lei, voltar a repor a taxa nos 0,2 gramas - o próprio comunicado do Conselho de Ministros avançava que este órgão se reservava o direito de tomar "todas as iniciativas que considerar adequadas à protecção da vida humana nas estradas".Perante essa expectativa, Assis sentiu-se em posição altamente incómoda e, com o apoio de toda a direcção da bancada, pensou se se devia ou não demitir. Foi com esse espírito que Assis se dirigiu ao Conselho de Ministros e falou com Guterres. O anúncio de que o Governo poderia reincidir na redução da taxa foi deixado cair. Assis decidiu permanecer no cargo.Ontem de manhã, a bancada do PS aprovou a, assim, em divergência oficialmente aparente com o Governo, a suspensão durante dez meses da aplicação da taxa de 0,2 gramas, bem como a criação de uma comissão científica que engloba também produtores de vinho. Ao lado do PS, votaram favoravelmente a suspensão a bancada do PSD e a do CDS - os dois partidos autores do pedido de revogação da lei que levou este caso ao Parlamento -, o PCP e "Os Verdes" abstiveram-se e o Bloco de Esquerda votou contra. Só que no PS, 16 deputados votaram ao arrepio da orientação da bancada e dez abstiveram-se. Tudo com o objectivo de agradar quer ao eleitorado urbano e anticonsumo de álcool ou que acha que ele deve ser afastado da estrada para fazer face à sinistralidade rodoviária, quer ao eleitorado rural e aos "lobbies" dos produtores e comerciantes de vinho, bem como responder às pressões do aparelho partidário dos socialistas, dos autarcas e dos candidatos autárquicos, que se multiplicaram em envio de mensagens ao Governo e ao grupo parlamentar. No final, o PS falou mais uma vez a duas vozes com o objectivo de agradar a eleitorados diferentes. O líder parlamentar jurava que continuava a manter uma relação de confiança com o primeiro-ministro, que apenas se tratava de uma divergência, mas que a maioria dos deputados estavam a favor da satisfação dos interesses do sector vitivinícola. Pouco antes, Guterres reafirmava a mesma confiança em Assis e que as divergências existentes não eram relevantes, já que não se tratava nem do Orçamento, nem de nenhuma questão internacional maior, mas garantia que o Governo do PS era contra a suspensão da taxa de 0,2 mg, que a bancada parlamentar do mesmo PS acabara de fazer aprovar. Já só não prometeu que a vai tentar repor. De resto, a operação alcoolemia, montada pelo primeiro-ministro correu como previsto.