George Harrison: o místico

Em 1971, os concertos de beneficência em favor de grandes causas humanitárias e globalizantes ainda não estavam na moda. Mas quando George Harrison organizou o Concerto para o Bangladesh, tendo convidado o indiano Ravi Shankar para actuar perante uma plateia de adeptos de rock'n'roll, ficou bem patente a distância que ainda separava o mundo ocidental do então chamado terceiro-mundo. Shankar subiu ao palco, sentou-se e começou a dedilhar o sitar - instrumento tradicional indiano de que era o mais conceituado intérprete -, de maneira que os seus sons exóticos invadiram o Madison Square Garden de Nova Iorque. O recinto encontrava-se lotado para assistir a um espectáculo onde também participavam Bob Dylan e Eric Clapton. Passados alguns minutos, e aproveitando a primeira pausa, a multidão aplaudiu efusivamente, fascinada pelas novas dimensões propostas por aquela sonoridade. Ravi Shankar agradeceu respeitosamente e avisou que apenas tinha estado a afinar o instrumento. A cerimónia, cujos fundos revertiam a favor dos refugiados do Bangladesh, ia então começar.O episódio, que se encontra registado no álbum com o mesmo nome do concerto, é anedótico mas não deixa de sublinhar o pioneirismo de George Harrison na descoberta e estudo da cultura indiana, não só musical mas também filosófica, religiosa ou espiritual. Apesar de nomes como John Cage e John Coltrane terem explorado a música indiana logo desde o início dos anos sessenta, foi pela mão de George Harrison que o sitar passou a ser conhecido no ocidente e a música indiana alvo de uma curiosidade que até aí se limitara a círculos mais que restritos. Tal interesse foi tão desmedido que o som do sitar passou a ser, no ocidente, automaticamente associado à música indiana, esquecendo uma imensidão de outros instrumentos e tipologias musicais, algumas das quais viriam a ser descobertas anos mais tarde.Muito antes das aulas de ioga se terem tornado obrigatórias para quem, no Ocidente, procurava cultivar um certo gosto pela evasão, George Harrison embrenhou-se a fundo em processos de meditação, chegando mesmo a influenciar decisivamente os outros três Beatles. Foram os tempos em que John Lennon, Paul McCartney e Ringo Starr também se vestiam à indiana, visitavam o Guru Maharishi e praticavam uma rigorosa dieta vegetariana. Em 1965, os quatro fantásticos editaram a canção "Norwegian wood", na gravação da qual George Harrison usa um sitar, o que acontecia pela primeira vez na música popular.Se para os outros Beatles o misticismo oriental podia ser considerado uma questão lateral, George Harrison investiu seriamente no conhecimento da espiritualidade hindu. Em 1966, vai para a Índia para ter aulas com Ravi Shankar, o mestre do sitar já na altura mundialmente reconhecido, e em "Sgt. Pepper's Lonely Heart Club's Band", de 1967, faz incluir o tema "Within you without you", completamente inspirado na música indiana. A crítica musical cunha um novo estilo musical, o "raga rock", desde logo seguido por outras bandas britânicas como os Kinks e algumas norte-americanas como os Byrds, que em "Eight miles high" demonstravam a sua devoção pelo psicadelismo oriental então emergente. Uma herança mais tarde seguida por nomes como os Grateful Dead, Ry Cooder e, mais recentemente, por bandas como os Dissidenten, Kula Shaker, Cornershop, Asian Dub Foundation e artistas como Talvin Singh, Nitin Sawhney ou mesmo Madonna que, em "Ray of Light", não dispensou alusões várias à cultura indiana.George Harrison passou desde então a professar a religião hindu, à qual foi fiel até aos seus últimos dias, deixando as marcas da espiritualidade indiana em muitos dos seus álbuns a solo e em eventos como o concerto pelo Bangladesh, um espectáculo com propósitos humanitários capaz de reunir inúmeras estrelas idêntico a outros que mais tarde iriam decorrer a uma escala planetária, como o "Live Aid".Em 1992, numa entrevista à revista "Billboard" em que fazia uma retrospectiva da sua carreira, George Harrison declarou que a sua ligação ao hinduísmo lhe permitiu "abrir uma porta que estava no fundo da sua consciência", acrescentando ainda que a substituição de drogas alucinogénias como o LSD pela meditação se deveu às maiores faculdades criativas que esta permitia. O seu primeiro disco a solo, o álbum triplo "All Things Must Pass", anunciava alguém que não temia a morte, estando certo de que a vida terrena não era senão uma passagem.

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