A animadora que pinta os filmes
"Um filme pintado e realizado por Florence Miailhe". Quem acompanha o mundo do cinema de animação sabe que esta frase constitui uma "assinatura", a marca de autoria de uma obra já relevante no quadro da animação europeia. Trata-se de uma realizadora francesa, com uma filmografia ainda jovem de apenas uma década e quatro filmes mas que lhe valeram já, por três vezes, a nomeação para o prestigiado Cartoon d'Or (ver caixa).Depois de ter integrado o júri de selecção do 25º Cinanima, em Espinho, Florence Miailhe está de novo no nosso país, agora a convite da Casa da Animação, no Porto, onde participa na iniciativa Arte & Animação. Ao longo desta semana, a realizadora dirige um "workshop" sobre pintura animada, tema que, como referimos, define a própria natureza da sua obra. "Cronologicamente, o que está primeiro no meu trabalho é a pintura, já que eu comecei por pintar e gravar. Mas actualmente a pintura e a animação estão verdadeiramente juntas: faço pintura animada", disse Miailhe em conversa com o PÚBLICO no passado fim-de-semana, depois de ter também intervindo no simpósio promovido na Casa das Artes (ver PÚBLICO de 25/11). "Para fazer os meus filmes, penso sempre em imagens em movimento" sintetiza a realizadora, depois de na sua intervenção no simpósio ter explicado que a animação surgiu na sua vida como "o prolongamento normal" do seu trabalho de pintora.Nascida em Paris, em 1956, Florence Miailhe formou-se em Gravura na Escola Superior de Artes Decorativas da capital francesa. Antes de experimentar o cinema de animação, trabalhou para jornais e revistas como maquetista e ilustradora, ao mesmo tempo que ia cultivando a pintura. Uma viagem à Argélia na década de 80 e o contacto com o mundo dos "hammams" (os banhos públicos existentes nos países do Magrebe) inspirou-a para a criação de uma série de quadros que viria a expor em 1989, e depois editar em serigrafias. Mais tarde, utilizaria esse seu trabalho como matéria-prima do seu primeiro filme, "Hammam" (1991). Nesta obra é já notório o desejo de animar, de libertar as figuras - as mulheres, no caso - das suas telas. As mulheres que Miailhe cria são seres em plena liberdade e distensão, personagens de um universo de sensualidade e erotismo que faz lembrar o traço de Picasso. Miailhe admite as influências do mestre espanhol, que classifica como "um desenhador extraordinário", mas lembra também a importância de Matisse e, sobretudo, da sua própria mãe, Mireille Miailhe, que a iniciou na arte da pintura.No simpósio da Casa das Artes, a realizadora citou o documentário de Henri-Georges Clouzot, "Le Mystère Picasso" (1956), para mostrar como "na pintura é difícil saber qual é o momento em que um quadro está verdadeiramente acabado". É essa indefinição que Miailhe integra no seu trabalho de animação, utilizando a técnica do desenho directo no papel sob a câmara de filmar. Isso permite-lhe "reinventar o movimento" e "integrar o acaso e mesmo a parte mais 'suja' do desenho" nos seus filmes. Trata-se de "uma escolha artística, também, porque aquilo de que gosto verdadeiramente é do momento de filmar, de desenhar sob a câmara", diz a realizadora,para quem o uso dos computadores, cada vez mais generalizado no animação, é apenas um utensílio complementar do seu trabalho. "Hoje em dia, com os computadores pode-se fazer tudo e ter um controlo permanente do que fazemos. Na pintura animada directa é o contrário: deixam-se visíveis os acidentes, o acaso e isso tudo; e é isso que mais me interessa", nota Miailhe.Para além desta opção técnica pela pintura directa sob a câmara, outra marca da obra de Florence Miailhe é a sua atenção à cultura árabe e oriental. Depois de "Hammam", "Schéhérazade" (1995) e "Histoire d'un Prince Devenu Borgne et Mendiant" (1996), um filme feito para um programa temático do canal televisivo Arte sobre "As 1001 Noites", são a expressão deste fascínio pelas cores e ritmos do mundo árabe.Já o seu trabalho mais recente, "Au Premier Dimanche d'Août" (2000) - depois deste, Miailhe está a fazer um filme sobre aves, respondendo a uma encomenda para um documentário sobre o Mali -, assinala uma mudança temática. Num registo autobiográfico, a realizadora pinta no ecrã a atmosfera de férias e de festa duma aldeia no Sul de França, mas mantendo o erotismo e a sensualidade dos seus filmes precedentes.Para o futuro, Miailhe pensa prosseguir neste registo mais realista, e tem como projecto animar pequenas história do quotidiano ("short cuts"), idênticas áquelas que o realizador americano Robert Altman fez em imagem real, com as suas "Histórias Americanas". Mas, acrescenta, também gostaria de abordar "os mitos da Criação". Com uma obra em trânsito permanente entre o real e o imaginário, Florence Miailhe é definitivamente um nome a reter no mundo da animação.Foi com um sorriso aberto que Florence Miailhe aceitou falar sobre a situação, no mínimo invulgar, de ter sido já nomeada por três vezes para o Cartoon d'Or - Prémio Europeu de Cinema de Animação sem nunca ter recebido o galardão. A primeira aconteceu logo com o seu filme de estreia, "Hammam", finalista do Cartoon d'Or em 1992, ano em que o vencedor foi "Manipulation", do britânico Daniel Greaves. "Era o meu primeiro filme, e ter sido nomeada era já um bom prémio", diz a realizadora. Mas admite que à segunda vez, em 1996, com "Schéhérazade", já não pôde evitar "alguma desilusão" ao ver-se preterida pelo júri, que premiou "Quest", do alemão Tyron Montgomery. Miailhe nota que esse filme "teve muito sucesso, mas não deixa de ser um trabalho de estudante". Já menos difícil foi aceitar que este ano, no Fórum Cartoon da Baviera, o seu "Au Premier Dimanche d'Août" tenha sido "ultrapassado" pela obra-prima do holandês Michael Dudok de Wit, "Pai e Filha". Pode ser que à quarta vez seja... de vez.