A "invasão da Holanda"
Quando George Bush foi eleito Presidente dos Estados Unidos, ninguém ficou com dúvidas de que a adesão americana ao Tribunal Penal Intencional (TPI) estava doravante excluída e que a convenção instituidora, o Estatuto de Roma, que Clinton assinara no final do seu mandato, não seria aprovado pelo Congresso. Era conhecida a fúria da direita republicana contra o TPI, acusado de poder vir a servir para no futuro julgar e condenar militares e dirigentes norte-americanos pelos crimes que fazem parte da jurisdição desse tribunal, nomeadamente os crimes de guerra, os crimes contra a humanidade, o crime de genocídio e o crime de agressão, este ainda por definir quanto ao seu "tipo legal". Entretanto, a adesão ao TPI foi crescendo um pouco por todo o mundo. A União Europeia recomendou aos seus Estados-membros que ratificassem atempadamente o Estatuto de Roma. O mesmo fez o Conselho da Europa, que hoje inclui quase todos os Estados europeus e mesmo vários Estados não europeus. Os receios sobre o apoio ao tribunal e sobre a reunião do número de 60 Estados para que o tribunal seja constituído e comece a funcionar revelaram-se infundadamente pessimistas. Tudo indica que o tribunal vai ser uma realidade dentro em breve. Depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro contra Nova Iorque e Washington, julgar-se-ia que a hostilidade dos Estados Unidos contra o TPI deveria desaparecer e que eles deveriam repensar a sua atitude perante essa instância judicial internacional, tanto mais que de alguns quadrantes logo surgiu a sugestão de que na primeira oportunidade de revisão do Estatuto de Roma se deveria acrescentar-se à jurisdição do tribunal o crime de terrorismo internacional. Acrescia que a pronta solidariedade que os Estados Unidos receberam da Europa e de outros países quanto ao seu combate ao terrorismo e à acção armada contra os taliban no Afeganistão parecia dever dar lugar a uma revisão do unilateralismo que Bush tinha imprimido à política externa norte-americana. Infelizmente, nada disso se passou. Pelo contrário. A liminar rejeição norte-americana do TPI não somente persistiu como se aprofundou. O Presidente propôs ao Congresso, e este está em vias de aprovar, uma lei federal destinada a "proteger os membros das forças armadas americanas", a qual visa explicitamente impedir qualquer eventual acção futura do TPI contra militares americanos e, mais do que isso, estipula sanções contra os países que ratifiquem o Estatuto de Roma e colaborem em qualquer perseguição judicial contra possíveis arguidos americanos. Em última instância, o projecto de lei em causa autoriza a realização de operações militares de resgate de cidadãos norte-americanos que possam vir a ser sujeitos a julgamento do TPI, que como se sabe ficará instalado em Haia. Por isso, a lei inclui a possibilidade de acções militares americanas contra a Holanda!... Trata-se, evidentemente, de uma chantagem para impedir preventivamente a ratificação e implementação do tribunal. Mas, mais grave do que isso, esta atitude dos Estados Unidos mostra que a administração Bush não está disposta para nenhuma transigência na sua luta contra a criação de uma justiça penal internacional permanente e independente. Por um lado, os Estados Unidos querem preservar o seu poder de punir unilateralmente, por via militar, os que eles considerem responsáveis por crimes que vitimem os seus interesses, dispensando qualquer instância judicial internacional. Por outro lado, eles não admitem que os seus próprios cidadãos sejam julgados e, se for caso disso, condenados por crimes desses, por um tribunal internacional. Esta posição dos Estados Unidos é tanto mais estranha quanto é certo que até agora foram eles a instigar a criação de tribunais penais "ad hoc" para o julgamento e condenação pelos responsáveis de crimes de guerra e contra a humanidade. Foi o caso do Tribunal de Nuremberga, para julgar os responsáveis nazis, e do Tribunal de Tóquio, para punir os responsáveis japoneses, ambos no rescaldo da II Guerra Mundial. Acresce o caso mais recente do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, que tem estado a julgar vários acusados de crimes praticados na Bósnia Herzegovina e noutras regiões da antiga federação jugoslava. Bem vistas as coisas, porém, os Estados Unidos só concordam com os tribunais penais internacionais quando se trata de tribunais "ad hoc", destinados a julgar os responsáveis vencidos de guerras em que os norte-americanos saíram vencedores. Quando se trata da hipótese de sujeitar algum dos seus à mesma justiça internacional, os Estados Unidos não só não admitem tal eventualidade como ameaçam retaliar contra quem ouse levantar um dedo nesse sentido. É óbvio que essa reacção não deriva de os Estados Unidos não conceberem a hipótese de os seus generais e soldados cometerem tais crimes. Pelo contrário: é justamente por a admitirem como possível que eles reagem de modo tão fanático. Afinal o que eles não toleram é a ideia de um norte-americano ser externamente responsabilizado por qualquer crime desses, pois isso inibiria a sua liberdade de acção contra os seus inimigos. Seguindo informa entre nós o "Diário de Notícias", representantes da União Europeia fizeram já sentir aos Estados Unidos que a anunciada reacção americana não deixará de fazer perigar as relações entre uma e outros. O ministro belga dos Negócios Estrangeiros, em nome da UE, já protestou contra esta insana reacção norte-americana. E o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Jochka Fischer, terá comunicado ao secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, que isso "abrirá uma brecha" nas relações entre as duas partes. Mas não é crível que isso afecte a rejeição da Administração Bush. Apesar da aliança na guerra contra o Afeganistão, a Europa não tem força para fazer dobrar os Estados Unidos nesta questão. A verdade é que os Estados Unidos não querem deixar de ter as mãos livres para substituir a justiça internacional pela sua retaliação militar unilateral e muito menos toleram a ideia de ver os seus militares inibidos pelo receio de virem a ser submetidos ao julgamento de uma instância internacional. Para eles a justiça internacional só serve para punir o que resta dos inimigos depois de derrotados militarmente. A justiça internacional é, por isso, um empecilho para as forças do novo império. Resta saber se esta característica manifestação de arrogância imperial irá mais uma vez colher o apoio incondicional dos analistas e comentadores domésticos, para quem todas as posições dos Estados Unidos são justificadas e sensatas e certas, e para quem todas as críticas, por mais objectivas e justificadas, não são mais do que prova de atávico "antiamericanismo primário", como não se têm cansado de denunciar histericamente desde o 11 de Setembro...