Era aqui o coração do horror
Era aqui. Cabul é uma cidade surpreendentemente buliçosa, mas o estádio Ghazi, na zona leste da cidade, é um local assustador. As bancadas, as zonas cobertas, os muros, as balizas, tudo está irremediavelmente velho, sujo e destruído. Os postes dos holofotes têm as lâmpadas partidas. Os enormes altifalantes pendurados dos dois lados da bancada central estão descaídos e desligados. O relvado está lá, mas seco, amarelo, transformado em palha. Entramos. Não há ninguém e o silêncio é absoluto. À volta, por cima das bancadas, erguem-se as montanhas. Se um estádio vazio, como um teatro vazio, é sempre um antro de fantasmas, no estádio Ghazi os fantasmas estão vivos e mordem como cães raivosos. Era aqui, até há pouco mais de uma semana, que os taliban consumavam as suas execuções públicas, que degolavam e amputavam os condenados pela Lei Islâmica, a Sharia, sob os olhos de milhares de espectadores excitados pelo terror. Olhamos à volta. Quietude. Silêncio. Um silêncio frenético, inexplicável. Era aqui. É difícil imaginar, difícil acreditar. Mas cada centímetro de chão contém vestígios perturbadores, inconclusivos, agoirentos. Tudo é pegajoso e disforme, e mete impressão, e medo, como num pesadelo.Nas bancadas, há milhares de pontas de cigarros, chicletes, papéis de rebuçados. Lenços de papel sujos, pacotes de biscoitos, páginas de livros escolares. No relvado há balas de metralhadora, farrapos de tecido, uma palmilha de sapato, papéis, vidros partidos. No topo da bancada coberta há um anúncio meio-apagado - "S.K. Motor Oil". Numa parede um grafiti: o desenho de um dragão a devorar um pássaro e a frase "I love you".Imaginamos as bancadas cheias de gente. Trinta mil pessoas, só homens daquele lado. Ali a bancada especial das mulheres, todas de burka. Vai começar o espectáculo. O rapaz, 16 anos, membro do clube de luta livre de Cabul, tinha sido visto, aqui mesmo, neste estádio, com um saco preto que não lhe pertencia. O saco era de um amigo, que o esquecera no balneário, ele ia levar-lho, explicou ele, mas o polícia taliban não quis ouvir, disse que era roubado. Levou-o para a esquadra taliban, e dali para o tribunal militar. O julgamento foi sumário: amputação. "Quando se ia ao tribunal militar, já não havia salvação", contar-nos-ia Abdurazok Bilol, o treinador do rapaz. Na sexta-feira seguinte o rapaz foi trazido por ali, até ao centro do relvado, onde o esperava todo o dispositivo "médico". Uma espécie de marquesa onde o deitaram, lhe deram a injecção da anestesia, e lhe amputaram a mão direita."Era ali, no centro do estádio, que amputavam os ladrões e degolavam os assassinos, ou outros criminosos considerados graves", explicar-nos-ia Ahmad Khalid, médico do hospital Sumhuriat, em Cabul. "As amputações eram feitas com uma faca cirúrgica, depois de administrada a anestesia, por um médico do hospital militar". Ahmad não sabe que colegas seus o faziam, porque os médicos tapavam os rosto, com uma espécie de burka, durante a sinistra operação. "Mas quando os taliban requisitavam um médico para fazer aquilo, ninguém podia recusar, por medo".Era sempre às sextas-feiras, às duas da tarde, que ocorriam as sessões da "Justiça" taliban. "Eles anunciavam na rádio: 'Amanhã vão ser executadas três pessoas, condenadas segundo a Sharia. Todos os crentes devem ir assistir!'", recordaria Ahmad. "Outras vezes não anunciavam, interrompiam abruptamente um jogo de futebol, expulsavam violentamente os jogadores, e começavam com aquilo. Aproveitavam o facto de o estádio estar cheio, por causa do futebol, para terem audiência".Talvez por essa razão, e ao contrário do que se pensa, os taliban permitiam o futebol. É certo que quando chegaram ao poder, em Setembro de 1996, eles proibiram terminantemente o futebol. "Entravam de repente no campo, cortavam a bola em dois, com uma faca, colocavam as metades na cabeça dos jogadores, e obrigavam-nos a correr assim, pela pista de atletismo", lembraria Mohamed Azam, secretário-geral da federação de alterofilismo e responsável pelo estádio Ghazi.Mas depois o futebol voltou a ser permitido, para atrair gente ao estádio. Sob certas condições, obviamente: o jogadores tinham de usar um equipamento especial com calças até aos tornozelos, e o público não podia bater palmas. Se quisesse manifestar contentamento ou entusiástico apoio à equipa, teria de gritar "Allah'u-Akbar!"E, é claro, a todas as horas das orações os jogos tinham de ser interrompidos. "Se não eram, eles entravam pelo campo a dentro, a bater nos jogadores e na assistência", diria Nsara Ahmat Karisadar, antigo campeão e hoje treinador da equipa nacional de boxe. Também ele, e os seus companheiros do boxe, um dos desportos mais populares no Afeganistão, juntamente com a luta livre e o futebol, tinha de usar calças até aos pés. "Mas o principal problema era a barba. Éramos muito bons, mas não podíamos participar em competições internacionais, porque a barba comprida é proibida no boxe". No ano passado, chegaram a ir a Carachi, no Paquistão, para participarem num campeonato internacional. Os outros atletas e os responsáveis pelo certame nem queriam acreditar no que viam, quando chegou a equipa de boxe do Afeganistão, de calças compridas e longas barbas. Mandaram-nos cortar a barba. "Não podíamos, sob pena de sermos mortos à chegada. Levámos três dias para chegar a Carachi, e depois não pudemos participar. Se pudéssemos, tenho a certeza de que ganharíamos o campeonato". Hoje, com a barba aparada e pronto a exibir as delgadas canetas saltitantes, Nsara quer aproveitar a presença de jornalistas estrangeiros no país para fazer um anúncio: "Queremos que informem o mundo de que já estamos barbeados, aptos para qualquer competição internacional".Era aqui. Faiz Mohamad Nazari, treinador da equipa nacional de futebol, confessar-nos-ia: "Creio que o Afeganistão não é comparável a mais nenhum país do mundo. Estamos na base de todas as escalas. Não é só a pobreza, isso não é o mais importante. É a ignorância. A burka das mulheres, a falta de televisão, rádio, jornais, internet. Aqui não há nada. Vai levar décadas até começarmos a ser um país normal".Ahmed Khalid, o médico, é ainda mais pessimista. "Prevejo que daqui a dez anos começaremos todos uma guerra outra vez. As pessoas são muito atrasadas, e miseráveis. Fazem tudo o que lhes mandarem, por dinheiro. Os taliban tinham muito dinheiro".Ahmed invocaria a forma como os milhares de pessoas reagiam, quando assistiam às amputações, enforcamentos e degolações. "Ficavam em silêncio, a ver, depois, quando a vítima morria, ou quando a mão amputada era mostrada triunfalmente, um taliban gritava 'Allah'u-Akbar!". E todos gritavam, em coro, como loucos, 'Alah'u-Akbar!'"Era aqui, há pouco mais de uma semana. Agora, tudo acabou. O silêncio entrou no estádio, mas o ar é demasiado denso. Parece impossível que alguma vez este local sinistro volte a ser apenas a casa do desporto de Cabul. Que alguma vez o futebol, o boxe, o atletismo, a luta livre voltem a dominar o estádio. Talvez nunca mais ninguém tenha coragem de aqui entrar, e as autoridades decidam transformá-lo num museu, como Auschwitz.Estamos no meio do relvado, fitando o desespero das bancadas vazias, e preparamo-nos para fugir dali, quando ouvimos vozes. São homens, que vão entrando aos pares, aos grupos, no estádio, a conversar animadamente, sentam-se nas bancadas, despem as roupas que trazem e envergam equipamentos de futebol. São homens de todas as idades. Dos 15 aos 60 anos, chegam, para jogar futebol. Primeiro chega Abdulrazok Bilol, treinador de luta livre, de barretinho branco na cabeça, com dois amigos. Depois, vemos chegar Mohamed Azam, secretário-geral da federação de alterofilismo. Faid Mohamed Nazari, o treinador de futebol, Ahmed Khalid, o médico, Nsara Ahmat Karisadak, treinador de boxe, todos chegam, para um desafio amigável, combinado desde a semana passada. "Costumávamos, todos os trabalhadores do comité olímpico afegão, fazer estes jogos, antes da chegada dos taliban. Agora retomámos a tradição", explica o alterofilista. Há uma grande algazarra, uma alegria aparentemente indestrutível, de velhos amigos. Ninguém parece muito interessado em recordar o que era aqui. Saltam todos para o relvado, e começa o jogo.