Música volta a ouvir-se nas ruas do Afeganistão
Um dos primeiros sinais de mudança nas cidades que a Aliança do Norte, a oposição antitaliban no Afeganistão, tomou durante a última semana foi a reactivação da rádio e o regresso da música às ruas, lojas e casas. Todos os relatos - cheguem eles de Mazar-i-Sharif, Herat, Taloqan ou de Cabul - dão conta da alegria dos afegãos que voltaram a poder escolher o posto de rádio que querem ouvir (antes, só havia a rádio oficial dos taliban). Nesta quinta-feira viveu-se na capital afegã outro sinal desta libertação: um grupo de homens jogou futebol no estádio da cidade, sem medo de ver o jogo interrompido pela realização de uma execução pública."Os mercados estão em alvoroço, as lojas reabriram e a música voltou a ouvir-se", relatava esta semana para a CNN a repórter Christiane Amanpour, acabada de chegar a Cabul. A música, proibida pelos taliban e já antes destes sujeita a várias censuras, foi no passado "uma força muito importante de reconciliação" no país. John Baily, um britânico autor de um estudo sobre a música afegã, defende que o elemento musical desempenhou ao longo dos tempos um papel-chave na identidade cultural do Afeganistão e um dos poucos unificadores numa sociedade muito dividida por tribos.Baily, que viveu em Herat na década de 70 e lá voltou para uma breve estadia em 1994, durante o regime do Presidente Rabbani, explica na sua investigação que "o processo" de censura em relação à música "endureceu sob o domínio taliban, mas não começou com eles". A fuga dos músicos afegãos para o exílio, por exemplo, começou em 1978 com o regime comunista e o seu Ministério da Informação e da Cultura, que controlava tudo o que era emitido na televisão ou na rádio.Quando os taliban chegaram a Cabul, em 1996, publicaram vários éditos relacionados com a música, proibindo a venda de cassetes nas lojas, a audição de música nos hotéis, veículos, transportes e festas de casamentos, onde também não se podia dançar. Tocar tambor era proibido em qualquer parte. O regime dos "estudantes de teologia" apenas admitia a audição de cânticos religiosos interpretados por vozes masculinas.Para Baily, cuja investigação foi publicada em Abril pela Freemuse (uma organização sediada em Copenhaga que se dedica a promover os direitos dos músicos à liberdade de expressão), uma sociedade privada de música torna-se "desumanizada". Falta-lhe "a expressão emocional pessoal que vem da composição, execução e audição da música, e falta-lhe a união das pessoas numa experiência comum que as faz sentirem-se mais próximas"."Quando a música instrumental foi banida, as pessoas perderam parte da sua identidade e passaram a ser constantemente recordadas que se encontravam a viver uma situação anormal", explica Baily, lembrando que "não é possível ter um casamento afegão em condições sem música". A música e a própria Rádio do Afeganistão "eram garantia de uma normalidade que nunca pode regressar ao país enquanto elas continuarem a ser proibidas". O facto de se ter começado a fazer ouvir música nos últimos dias "significa que para as pessoas a normalidade voltou".Outro exemplo da sensação de libertação que se apoderou dos afegãos nas cidades de onde os taliban já foram expulsos foi dado em Cabul, quando um grupo de homens da cidade decidiu despir as túnicas e dirigir-se ao estádio da cidade para jogar futebol. "No passado, os jogos de futebol eram interrompidos e eram organizadas execuções para todos verem", contou à Reuters Ahmed Marof, um dos participantes no jogo. Os "estudantes de teologia" preferiam usar os estádios de futebol para fazer cumprir as sentenças de morte, transformando estas execuções num espectáculo a que acorriam muitos afegãos. Embora permitissem jogos de futebol em ocasiões especiais, impunham várias restrições à sua realização. Para além de não poderem aplaudir, os espectadores só podiam manifestar o seu entusiasmo através de fórmulas definidas, gritos como "Allah Akbar!" ("Deus é grande").Os jogadores eram obrigados a usar longas camisas e calças compridas para que nenhum pedaço do corpo ficasse a descoberto. "Antes, os taliban obrigavam-nos a usar roupas compridas e hoje podem ver-nos de mangas curtas e calções", disse à Reuters Ahmed Zaia: "É maravilhoso."Impedido de participar na maior parte das provas desportivas internacionais desde a invasão soviética, em 1979, a situação de guerra permanente dos últimos anos não permitiu ao país desenvolver estruturas desportivas ou alcançar sucessos internacionais neste campo.Tal como em todos os aspectos da cultura afegã, as restrições à música ou às práticas desportivas não começaram com os taliban, mas foram consideravelmente intensificadas pelo seu regime. A sua partida parece ter devolvido aos afegãos uma enorme sensação de liberdade."Não posso acreditar que tudo mudou tão depressa", disse à Reuters Leyla, uma jovem afegã de 19 anos, residente em Cabul. "Agora podemos fazer aquilo que escolhermos", explicou, enquanto colocava no seu leitor de cassetes uma gravação de música popular afegã.