As 40 horas da tomada de Taloqan

Dois mil soldados da Aliança do Norte, seguidos à distância pela aviação norte-americana, chegaram à linha da frente, dispostos a avançar sobre a cidade. Conquistaram-na, mas os taliban ofereceram resistência. Reportagem da tomada de uma cidade estratégica na guerra do Afeganistão.

Foto

A batalha de Taloqan durou quarenta horas. Na madrugada de sábado, milhares de soldados de toda a região de Takhar receberam a ordem por que esperavam há meses. Em centenas de walkie-talkies espalhados por aldeias, estradas, montes, nas linhas da frente, nas segundas linhas, nos quartéis, nos bazares, nas casas feitas de lama de todas as aldeias em redor de Taloqan. Em todos os pequenos walkie-talkies pretos ecoou a ordem, emitida à moda da Aliança do Norte, para que não falhasse, repetindo cada palavra quatro vezes. "Finalmente a hora chegou: Taloqan, Taloqan, Taloqan, Taloqan. Começou o ataque."

Visitando as segundas linhas e as linhas da frente, dificilmente se poderia acreditar que algo viesse a acontecer.

Num posto da estrada a vinte quilómetros de Taloqan, uns vinte soldados preparam-se para começar a disparar morteiros. "Os canhões são apontados aos alvos", explica-nos Faruk, o comandante da divisão. "Por detrás daquele monte fica Taloqan".

À frente dos canhões pareceu-nos ver apenas um agrupamento de árvores. Espreitámos pela mira telescópica na esperança de vermos a praça central de Taloqan ou, pelo menos, a estrada de acesso à cidade. Mas vimos apenas um saco de plástico amarelo. Seria um objectivo estratégico? Só à despedida, enquanto os soldados garantiam sorridentes "amanhã tomamos Taloqan" é que reparámos que o saco de plástico estava no chão, ali mesmo, uns metros não à frente mas atrás do canhão. "Tomorrow Taloqan", acenavam os soldados. "Boa sorte".

Sábado

Durante todo o dia de sábado os bombardeamentos continuaram, embora as probabilidades de acertarem nos alvos parecessem muito remotas. Os americanos também se mostravam muito empenhados no empreendimento. Da estrada, a uns cinquenta quilómetros de Farkhar, a cidade mais próxima de Taloqan, podiam ver-se, no céu, vários círculos e espirais de fumo. Os aviões dos Estados Unidos sobrevoavam a região mas não lançavam bombas. Vieram apenas observar. Terão achado que estava tudo bem - e foram-se embora.

Ao cair da noite, camiões de soldados e jipes com lança-morteiros dirigiram-se para as linhas da frente. "Recebi ordem para avançar", disse-nos, sentado no bazar de Farkhar, Naruzin, um ex-professor de Taloqan que fugiu quando a cidade foi tomada pelos taliban, há 14 meses. "Eles fecharam a escola e eu tive de fugir com a família. Mas amanhã voltarei para reencontrar os meus alunos. Esta noite vou lutar, não temo a morte."

Dois mil soldados chegaram à linha da frente, dispostos a avançar sobre a cidade, mas os taliban ofereceram dura resistência. Asadulo, um soldado de 18 anos, foi atingido numa perna por uma bala. "Ia a correr ao lado da estrada, fui atingido por um snipper que devia estar num dos montes", conta-nos Asadulo, bigodinho ralo e franja sobre a testa. Está deitado sobre uma manta imunda no hospital de Farkhar, kalashnikov ao lado da cama, a foto de uma duvidosa actriz de cinema colada na coronha com fita-cola.

Foi trazido ao colo por um companheiro, Zainuddin, 20 anos. "Estávamos a avançar, saltámos as trincheiras, íamos directos a eles", relatou Zainuddin. Mas ouvi um grito, olhei para trás e, a uns trinta metros, vi Asadulo no chão. Voltei para o ir buscar. Quase destruíamos as linhas da frentes dos taliban, mas começou a haver feridos e tivemos de desistir."

Depois de Asadulo foi Zumarai, 25 anos, que foi atingido por uma mina. "Não me arrependo. Perdi uma perna mas foi para defender o meu país", disse-nos ele, numa voz sumida. O médico, Abdulahsi Ottiti, que dirigiu uma clínica em Taloqan antes de fugir, três dias depois da conquista pelos taliban, levantou o cobertor para que víssemos a perna de Zumarai. Ainda a tem, à excepção de um pé, substituído por uma ligadura ensanguentada. Mas ser-lhe-á amputada dentro de meia hora. A mulher ainda não sabe de nada.

Domingo

A Aliança do Norte não pode falhar mais uma vez. Os walkie-talkies enlouqueceram. "Taloqan, Taloqan, Taloqan, Taloqan."A mobilização era geral. A antiga capital do norte ia ser tomada e ninguém podia ficar de fora.

Desde Farkhar, a trinta quilómetros, desde todas as aldeias da região, milhares de soldados meteram-se ao caminho. Muitos em camiões, em jipes, em carros. Mas a maioria a pé. Túnica afegã, turbante e misturas variadas de uniformes camuflados árabes ou soviéticos, metralhadora ao ombro ou lança-granadas, uma manta enrolada, mochila ou um saco de pano, aí vão eles. Sujos, esfarrapados, crianças, velhos, uns de moto outros a cavalo, eis o exército libertador do Afeganistão.

Vêm aos milhares, subindo a estrada que serpenteia ao longo do rio à frente das montanhas imponentes, cobertas de neve. Vêm camiões completamente atafulhados de combatentes, em cacho, gritando "Alá'akhbar!".

Vêm carros de combate com canhões, com lança-rockets, vêm jipes todos amachucados com canhões Grad russos. Vêm mais grupos a pé.

É como uma grande peregrinação, vêm preparados para dormir, comer, passar o tempo que for preciso. Têm rostos angulosos, escuros, selvagens, barbudos, desdentados, vesgos, vigorosos, sorridentes. Têm rostos amigos. Quando passamos por eles, todos querem cumprimentar, dar um abraço, dizer qualquer coisa.

São pelo menos cinco mil, segundo os cálculos dos vários comandantes. À medida que chegam às linhas da frente vão sendo distribuídos por vários pontos no cimo dos montes, sempre cumprindo as ordens que chegam pelos walkie-talkies. A maioria são muito jovens, alguns mesmo crianças.

"A minha missão é trazer as mantas para os soldados", diz Salam, 12 anos, a rir. "Eu vou com os soldados até Taloqan", acrescenta Sahir, também de 12 anos. Salam e Sahir nunca foram à escola, não sabem ler nem escrever.

No futuro, quando conquistarem Taloqan, a cidade de onde fugiu com os tios e onde os pais ficaram, Sahir quer estudar para ser comandante.

Três da tarde

A partir das três horas da tarde, os combates intensificam-se. Rockets e morteiros são disparados constantemente. Ouve-se o estrondo ensurdecedor aqui e, segundos depois, um baque surdo e um geiser de fumo lá ao longe, na curva do vale onde fica Taloqan.

Os soldados continuam a avançar, concentram-se em número crescente na linha dianteira. Os morteiros são agora uma chuva torrencial, acompanhados pelo tiroteio de metralhadora.

Os taliban respondem com alguns rockets, mas nenhum explode perto das nossas posições. "Eles estão a fugir aos milhares", alguém grita. Dão informações de um "espião", um homem que esteve nas linhas inimigas. "Alá'akhbar", gritam os soldados.

Alguns grupos começam a avançar para além da linha da frente. De forma inexplicável espalha-se uma corrente de excitação. Todos riem, gritam, abraçam-se. E de súbito os walkie-talkies gritam: "Avançar, avançar, avançar, avançar." Os taliban estão derrotados. A palavra de ordem é correr em direcção à cidade. Literalmente, correr.

Aos gritos, os soldados correm como loucos, com as metralhadoras, as katiuskas, as mochilas, pela estrada fora, como um ataque medieval. Os camiões e jipes aceleram. "Taloqan, Taloqan, Taloqan, Taloqan", gritam. "Todos para Taloqan!" É uma massa pardacenta, invencível, uma torrente de lava descendo rumo ao poente.

Entramos em território recém-conquistado. A estrada está coberta de valas, bombas, restos de munições. Há no ar um intenso cheiro a pólvora. No chão, à beira da estrada, está uma bota, provavelmente com um pedaço de pé dentro, dentro de uma poça de sangue vermelho-vivo. De súbito, ao chegar a uma ponte, os soldados atiram-se para o chão. De um monte em frente, alguém está a disparar metralhadoras sobre nós. Todos apontam as armas para lá. Os camiões tentam inverter a marcha, há correrias, gera-se o pânico. De onde vêm os tiros? Afinal, há alguns resistentes taliban. "São árabes, paquistaneses, tchetchenos", grita um comandante para um walkie-talkie.

"Os árabes nunca se rendem. Deixam-nos ficar para trás, eles não se importam de morrer. Temos de os matar", explica-nos. Lá de cima, os "árabes" continuam a disparar e de repente vemo-los, dois homens, a correr, de armas em riste. São disparados canhões, metralhadoras, um arsenal de munições, para acabar com os dois renitentes. Até que eles se calam.

Continuamos, mas à frente surgem de novo snippers nas montanhas. A caravana é detida naquele ponto, quem já passou continua a marcha sobre Taloqan. Ficamos parados, a disparar sobre uns taliban teimosos mas então ouvem-se disparos atrás de nós. "Eles estão dos dois lados, é uma emboscada!", grita alguém. Uns dez camiões e umas centenas de homens ficaram entre as duas linhas de fogo. O tiroteio dura meia hora. Depois, é a ordem para avançar.

Noite

É já noite quando entramos em Taloqan. Dos dois lados da estrada, centenas de pessoas aplaudem os libertadores. A certa altura enchem a estrada, obrigam os camiões a parar, abraçam os soldados.

Chegamos à avenida principal de Taloqan, Sarek-kir. Depois à praça central, no meio da qual há uma espécie de guarita para o sinaleiro. O comandante-geral das tropas, o general Duoudkhan, faz um discurso. Mas não há muita gente na praça. Apenas soldados. A população está provavelmente em casa, cheia de medo. Toda a euforia de há algumas horas atrás desapareceu. Assim às escuras, com os soldados a deambular à volta da guarita do sinaleiro, a praça central de Taloqan recém-libertada é afinal um lugar triste. Talvez porque a libertação veio tarde de mais ou porque já ninguém acredita em libertações ou porque não há glória possível numa guerra que dura há demasiado tempo (Taloqan é uma palavra uzbeque que significa poça de sangue).

Grupos de homens barbudos acercam-se de nós. "Amanhã vamos todos ao barbeiro cortar isto" dizem. Estão contentes. "É incrível. Há uma hora os taliban estavam aqui." Outros contam-nos como os taliban torturavam e executavam pessoas, como os roubavam, como maltratavam as mulheres.

"Uns vinte por cento da população da cidade fugiram com os taliban, não tinham outro remédio", diz-nos Chessik, 17 anos. Vamos a casa dele. O pai, Raussuzin, 60 anos, é professor de religião na escola secundária. Está a ouvir um emissor iraniano no rádio portátil que tem tido escondido em casa. Foi com esse rádio que soube do atentado ao World Trade Center. "Foi um atentado terrorista, o povo do Afeganistão condena o terrorismo, o Islão não tem nada a ver com o terrorismo nem com as acções dos taliban." Na parede da sala onde nos oferece um chá, está um retrato de Atik, o irmão de Chassik que aos 21 anos foi morto pelos taliban. "O Islão é uma religião evoluída", diz ainda o professor.

Pouco depois, perguntámos a dois homens na rua se sabiam quem era Bin Laden. "Não, nunca ouvimos falar. Não somos pessoas muito cultas."

Sugerir correcção