144 - um dia ao telefone da Emergência Social
Quinta-feira, dia 8 de Novembro, 16h35. "Acabou de 'cair' a situação de um idoso de 91 anos. Parece que está em casa, sozinho, em péssimas condições", avisa a assistente social Ana Paula às colegas da Linha Nacional de Emergência Social (LNES) do distrito do Porto. O único carro do serviço está na rua: Manuela, uma das seis técnicas que integram a equipa portuense, encontra-se no Hospital Geral de Santo António (HGSA), a acompanhar um alegado sem-abrigo numa consulta. Enquanto a viatura não regressa, Ana Paula faz vários telefonemas, para equacionar soluções para o caso do nonagenário - o Sr. António, chamemos-lhe assim. Algum tempo depois, um arrojado telemóvel vibra ao som de ruídos intermitentes. Lurdes Guimarães, coordenadora da linha 144 no Porto, atende a ligação sob os olhares atentos das técnicas Ana Paula e Lucília. Elas sabem que, quando os aparelhos tocam, alguém está a precisar de ajuda no distrito. Trata-se de dois números secretos que servem exclusivamente para a comunicação com o "call center" de Lisboa, que lhes "sinaliza" as chamadas que recebem, e para o trabalho técnico. Desta vez, era Manuela a ligar do hospital. Manuela explica que o tal paciente - um homem de 38 anos que "caiu" na linha 144, no passado dia 27 de Outubro, identificado como um sem-abrigo que precisava de apoio - está a dizer que "vai partir tudo". Sofre de esquizofrenia e não quer um internamento permanente. Tem comportamentos violentos, recusa-se a falar da família e não toma medicação específica para a sua doença. "Não se ponha muito perto dele", orientava Lurdes, ao saber das agressões prometidas pelo senhor. Terminada a chamada, a coordenadora anuncia que Manuela - assim como o carro, um modelo de cor branca da marca Citroën, em óptimas condições - vai demorar a chegar. 17h30. Ana Paula continua a tratar da "situação" do Sr. António. Encontrou uma vaga para acomodá-lo num determinado lar [dados que possam, de alguma forma, identificar as vítimas não serão mencionados nesta reportagem]. A cada pequena vitória, Ana Paula sorri e partilha as informações com as colegas. Pouco depois, volta a pegar no telefone. Cada processo que chega à sala onde funciona a linha no Porto, embora seja entregue a uma só técnica, pertence a toda a equipa. À medida que os turnos se sucedem, transmitem os dados essenciais umas às outras. Elas referem-se às vítimas pelo nome - e não por números. Vivem intensamente as 48 horas que têm para encaminhar os casos que "caem" na LNES. Na véspera, por exemplo, a assistente social Cláudia vibrava por ter alcançado um objectivo: disponibilizar uma casa e um emprego para Taís, o nome fictício de uma mulher de 22 anos fustigada pelo ex-companheiro. Taís vai trabalhar como copeira num hotel de luxo e morar, juntamente com o seu filho de três anos, numa casa camarária em Matosinhos. 18h30. Após entrar em contacto com o Centro Social Rainha Dona Leonor, Ana Paula descobre mais informações sobre o Sr. António. Sabe, por exemplo, que o nonagerário tombou das escadas da sua casa há três semanas. Sabe que recebe cuidados de higiene e alimentação da Acção Social. E sabe também que o idoso tem dois filhos, que "não lhe ligam nenhuma". A ideia é reunir o máximo de dados antes de intervir "in loco". É por isso que as assistentes sociais perguntam tantas coisas. 19h30. Chega o carro, trazido por um outro motorista. O turno de Ana Paula, composto por seis horas contínuas, chega ao fim às 20h00. Lucília, que estará em prevenção durante toda a noite, assume a "situação" do Sr. António. Mas, antes que esteja pronta para partir, um dos telemóveis toca. É o "call center" de Lisboa, a "sinalizar" um caso de violência doméstica - 22 por cento dos 126 casos atendidos, em Outubro, no Porto, eram da mesma tipologia, enquanto 41 por cento estavam relacionados com sem-abrigo e 32 por cento a situações de risco. A mulher de 33 anos com que Lucília está falar agora, às 19h40, é mais uma que fará parte das estatísticas de Novembro."Quero que me explique o que se está a passar. Quantas crianças? Três? Menores? É casada há quantos anos? Hum... sei... E é maltratada desde essa altura? Ele voltou a bater-lhe na quarta-feira passada?", pergunta Lucília, enquanto aponta tudo em folhas reaproveitadas para rascunho. A vítima é mãe de três meninas e pede ajuda. Tem medo. Mora em Ermesinde e está desempregada. A assistente social pergunta-lhe se quer um abigo confidencial para esta noite. A voz do outro lado da linha diz que não. Que não é preciso. Que quer ficar em casa. Lucília certifica-se de que a senhora não corre perigo de vida. E frisa que tanto o 112, como o 144 estão disponíveis, se houver risco de novos maltratos.20h00. Lucília deixa o edifício da Segurança Social, levando consigo os dois telemóveis secretos. O carro branco cruza a Praça do Marquês em direcção à ilha onde habita o Sr. António. 20h20. Lucília sai do carro e pergunta a uma vizinha se conhece o Sr. António. Ela indica-lhe o caminho. Numa questão de segundos, alguns residentes da ilha comunicam-se em voz alta e fazem surgir, quase por mágica, a nora do idoso. Ela apressa-se em abrir a porta, num gesto acompanhado por um "entrem, entrem" automático. Lucília galga a escada tosca e estreita para encontrar, dezenas de degraus acima, o Sr. António deitado numa cama de lençóis limpos. Ao seu lado, está uma vizinha a arrumar-lhe o leito, os seus dois filhos, um saco plástico com fraldas geriátricas usadas e um molho de roupa suja."Está a ver como está asseado? Está a ver ali a fruta, o Cerelac e o pãozinho com fiambre? Não lhe falta nadinha, doutora!", vocifera a tal nora. Lucília concorda, sobrevoa com os olhos as duas divisões exíguas da casa e faz mais perguntas. Diz que, uma vez que o Sr. António está assistido, não vai levá-lo para um lar. A nora afirma que, "se fosse para sempre", concordaria com a mudança - já que o próprio ex-marido "não dá atenção ao pai" -, mas que, se é só por uma noite ou duas, "mais vale o velhote ficar cá". A assistente social lembra que, neste caso, verá o que pode fazer para encaminhar o nonagerário definitivamente para um lar. Despede-se.Ao chegar ao rés-do-chão, Lucília é interceptada por vizinhos de Sr. António. Eles alegam terem sido os autores da chamada de "sinalização" para o 144. Querem que a assistente social saiba que "a história está mal contada", pois o idoso é negligenciado pela sua nora. "Hoje pode estar tudo limpo, mas costuma ser um cheiro que ninguém aguenta. A nora dele vai limpá-lo quando calha e sempre a gritar palavrões. Aqui não há condições nenhumas, o velhote já partiu a cabeça quando descia as escadas", narra um senhor de cerca de 40 anos. Lucília agradece as informações, mas sai "à francesa" quando a discusão entre os vizinhos fervilha. Lucília comenta que está cansada e vai para casa. Mal sabe que, às 2h00, terá de levantar-se para outra emergência. E que receberá outra chamada às 4h00. E, de resto, o sono sobejará quando for 6h30 e o despertador anunciar um novo dia de trabalho.