Cecília Meireles
1 - Anteontem, fez cem anos que nasceu Cecília Meireles. Hoje, faz trinta e sete anos que morreu Cecília Meireles.Não me lembro de ter lido uma linha ou de ter ouvido uma palavra sobre esse centenário, aqui em Portugal. Portugal das origens dela, Portugal que ela tanto amou, Portugal onde viveu entre 1934 e 1936, quando ensinou literatura brasileira nas Universidades de Coimbra e de Lisboa, Portugal que tantas vezes visitou. Imagino que no Brasil, o centenário tenha sido, ou esteja a ser, cariciosamente celebrado. Mas Cecília Meireles não foi só um dos maiores poetas brasileiros do século passado. Foi um dos maiores poetas da língua portuguesa. Como a pudemos esquecê-la, a ela, "mulher dormente na líquida noite", menina Olinda, menina Ondina, do tempo em que "na areia do Douro, orvalhada de ouro / (...) / era lindo brincar".Quanto dista hoje Portugal do Brasil? Houve um tempo - não assim tanto tempo, porque bem me lembro dele e "depressa o tempo passou" - em que sabíamos quem era quem na literatura brasileira e havia tantos livros deles como nossos nas nossas livrarias. Graciliano, Marques Rebelo, Lins do Rego, Clarice Lispector, ou o maior de todos - o maior escritor da língua portuguesa do século XX -, Guimarães Rosa, eram-nos nomes familiares e ensinavam-nos a ler e a escrever (para não falar dos popularíssimos Erico Veríssimo e Jorge Amado, que, para mim, são outra conversa). E tanto quanto Nemésio, Jorge de Sena, Sophia ou Mário Cesariny, eram nossos poetas (muito mais do que Carlos Drummond ou Manuel Bandeira) Jorge de Lima, Murilo Mendes, João Cabral e Cecília. "Os vivos afastam os vivos". Afastarão? Em Portugal, os do Brasil não afastam. De vez em quando, falam-me de um nome ou obra que me dizem "nascidos" no último quartel do século morto e que terão a grandeza dos citados. Procuro-os e não os acho. "Isto é uma floresta cheia de vento / empurrando para longe o amoroso visitante". Tão cheia de vento, que me acho sozinho a escrever sobre Cecília entre os muitos livros dela, comprados ou oferecidos nos anos 50 e 60, como aquele ("Romanceiro da Inconfidência") em que a inicial "A" me escreveu: "Um negro desceu da Serra / (E era um negro alto bastante) / Vinha escondido no negro / certo diamante". Espaço e "Futuro Mozart".2 - Como falar de Cecília a quem nunca a leu ou talvez até lhe desconheça o nome?1. Iremos, pois, pelos cemitérios amáveis sem acordar muito os que dormem, sem os ressuscitar: apenas para lhes acender no sonho certas luzes de pensamento o que lhes diríamos se estivessem vivos e sem violência: o que talvez entendam, pois que já estão mortos2. Ó meu Deus se esta é a distância que separa a mocidade da infância se são teus estes modos da verdade que outros hei de querer meus? Ó meu Deus se este é o caminho que traça a tua bondade devagarinho farei seus meu amor, minha saudade e em tudo serei adeus3. Cantarão os galos, quando morrermos, e uma brisa leve, de mãos delicadas, tocará nas franjas, nas sêdas mortuárias. E o sôno da morte irá transpirando sôbre as claras vidraças. E os grilos, ao longe, serrarão silêncios talos de cristal, frios, longos êrmos, e o enorme aroma das árvores. Ah, que doce lua verá nossa calma face ainda mais calma que o seu grande espêlho de prata! Que frescura espessa em nossos cabelos livres como os campos pela madrugada! Na névoa da aurora a última estrêla subirá pálida Que grande sossêgo, sem falas humanas, sem o lábio dos rostos de lôdo, sem ódio, sem amor, sem nada! Como escuros profetas perdidos, conversarão apenas os cães, pelas várzeas. Fortes perguntas. Vastas pausas. Nós estaremos na morte com aquele suave contorno de uma concha dentro dágua.3 - Como falar de Cecília a quem nunca a leu ou talvez até lhe desconheça o nome?Nem sequer posso recomendar a leitura do belíssimo artigo "Sobre Cecília Meireles", que José Bento escreveu em Dezembro de 1964, para "O Tempo e o Modo" (nº 22), um mês depois dela ter morrido, aos 63 anos. "O Tempo e o Modo" está tão longe dos olhos dos leitores como os livros de Cecília.Posso apenas citá-lo na conclusão, depois de ter recordado, dela, a frase: "Em toda a vida nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade". Transcrevo de José Bento: "Um viver permanente contíguo à morte, um contínuo entregar-se à solidão, um sentir-se ausente e separada do amado por incapacidade duma perfeita comunhão e porque a morte foi a outra "Amada eterna e tenebrosa / pelas tuas mãos escolhida / para teu convívio absoluto", um desentendimento com a sua própria condição, uma recusa a julgar-se e a julgar os outros, um saber-se diferente e excluída "pastora das nuvens", por ver em tudo transitoriedade, morte - eis algo do muito que encontrei numa releitura da poesia de Cecília Meireles que a sua morte me sugeriu.Cito outra vez estas palavras de Cecília Meireles. "Sobre um poema quase nunca há muito a dizer. Deseja-se que seja amado, se for possível".4 - Quando nasceu, no Rio de Janeiro, o pai morrera já, poucos meses antes. A mãe morreu quando ela tinha três anos. Nunca conheceu a única irmã que teve. Educada pela avó, começou a escrever poemas aos nove anos. Aos 16, começou a ensinar numa escola pública e aos 18 publicou o primeiro livro de poemas: os sonetos "Espectros", ainda muito marcados pelo simbolismo.Mais quatro livros em 1923, 1924, 1925 e 1929. Depois, um silêncio de dez anos. Em 1939, publicou o livro que a consagrou e onde o seu estilo - único - se encontra inteiro: "Viagem". Depois, mais vinte e seis livros em vinte e cinco anos. A obra completa foi editada pela Civilização Brasileira MEC em 1973, em oito volumes.Em 1943, publicou, no Brasil, uma antologia de "Poetas Novos de Portugal", que abre com Camilo Pessanha e fecha com Adolfo Casais Monteiro. Nela, os lugares centrais são ocupados por Irene Lisboa e por Fernando Pessoa, que nessa antologia foi revelado ao Brasil, ainda antes do início da edição da sua obra completa, em Portugal.5 - Nos trópicos, há uma erva, também conhecida pelos nomes de dormideira, juriqui-rasteiro, malícia ou malícia-de-mulher, a que se chama "sensitiva", nome vulgar da "mimosa pudica". "Sensitiva" é uma das palavras mais recorrentes da poesia de Cecília Meireles. Essa planta que se encolhe ao toque, é uma das mais perenes imagens dela. "No cedro e na rosa / o gesto da brisa. De joelhos, na noite, / colhíamos juntos / a sensitiva". Ou: "Junto à áspera terra / tua mão e a minha / se encontraram sob / o pânico súbito / da sensitiva". Ou: "Pergunto a Deus se estou viva / se estou sonhando ou acordada / Lábio de Deus! - Sensitiva / tocada".Mas é com o "4º Motivo da Rosa" do "Mar Absoluto" que quero dizer adeus a Cecília, nos cem anos dela. Não te aflijas com a pétala que voa, também é ser, deixar de ser assim Rosas verás, só de cinza franzida, mortas intactas pelo teu jardim. Eu deixo aroma até nos meus espinhos, ao longe, o vento vai falando em mim E por perder-me é que me vão lembrando por desfolhar-me é que não tenho fimPresidente da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema