"O formato dos concertos do século XIX não é o mais apropriado para escutar música antiga"
Desde a sua fundação, em 1998, que Le Poème Harmonique se tornou numa referência do panorama actual da música antiga. O director deste agrupamento francês, e também especialista em instrumentos de corda dedilhada, Vicent Dumestre encerrou com o seu grupo o V Festival de Música de Mafra e falou com o PÚBLICO a propósito dos seus projectos e da sua particular visão da música do século XVII, de que é especialista. Formado em história da arte, esta é uma das razões pelas quais o seu percurso tomou uma peculiar orientação no panorama actual da música antiga: "Cheguei à música relativamente tarde, com 19 anos, o que faz com que, efectivamente, os meus projectos musicais tenham muito a ver com as artes plásticas." Isto, aliás, "dificilmente poderia ser de outra maneira quando se está interessado pelo Barroco, um período em que todas as artes estão entrelaçadas, de maneira que é impossível compreender a música ignorando a pintura, a arquitectura, a gravura, o teatro da época."O ponto de partida de Le Poème Harmonique foi, sobretudo, "a tentativa de propor uma nova maneira de escutar a música antiga, dando especial atenção à cultura da época em que foi criada". Isto trouxe consigo uma pesquisa em torno das novas maneiras em que essa música pode ser apresentada, já que "o formato dos concertos proveniente do século XIX não é o mais apropriado para escutar obras de outras épocas". Para Dumestre, esta renovação é também uma maneira de atrair novas audiências: "O que é preciso é fazer as coisas com integridade; quando o resultado é belo, acaba por atrair o público." Sendo um apaixonado pelo passado, Dumestre considera que não é aceitável, do ponto de vista do espectáculo, ficar por uma visão congelada das outras épocas: "Vivemos num tempo paradoxal, em que artisticamente poucas coisas olham para o passado enquanto os defensores do património se atam a ele de forma exagerada. Para mim, o recurso ao passado é uma via para criar coisas belas, simplesmente. Não sou de todo passadista, embora ache que há épocas do passado em que a beleza foi muito mais importante do que nos dias de hoje. Isto não significa, evidentemente, que a beleza não se possa encontrar em todo o lado, é uma questão de saber olhar." Efectivamente, no seu trabalho, Dumestre tem mostrado uma rara capacidade para se aproximar do público de hoje, "tentamos apresentar-nos também em teatros frequentados pelo grande público, que não é habitual encontrar nas salas de concertos clássicos". Defende ainda que a música antiga pode ser uma maneira privilegiada para "reunir públicos e hábitos musicais que estão hoje muito afastados porque nela não havia distinção entre a cultura popular e a cultura erudita". E ilustra isto com um exemplo concreto, "tenho dado a escutar a amigos a gravação prévia do nosso próximo CD, com música veneziana do carnaval barroco, e identificaram nela ritmos da música africana".No âmbito de Le Poème Harmonique, Dumestre está sobretudo interessado no século XVII, quando "a retórica integrava todas as artes, incluindo a música." Este entendimento da cultura da época tem implicações na sua própria maneira de encarar a interpretação musical, na qual distingue dois momentos: primeiramente "descobrir qual o modo do afecto ou do sentimento que é utilizado pelo compositor na sua obra e, logo, encontrar o gesto que precede a própria execução". Para a interpretação da música da época acha aliás fundamental a descoberta, por parte dos músicos, do teatro barroco: "Está no centro das artes da época, todas as artes o copiam, e nós deveríamos aprender nele o distanciamento, o uso da máscara." O intérprete não pode existir como indivíduo, deve "utilizar os seus sentimentos, mas não para partilhá-los com o público: o que se deve dar é a sua representação, tal como acontece na 'commedia dell'arte'".Quando interrogado acerca da maneira como equilibra a pesquisa musicológica e o desenvolvimento puramente artístico dos seus projectos, Dumestre é categórico: "Todos eles partem de um sentimento interior que não domino de todo, nunca são a consequência de uma pesquisa musicológica." Dá como exemplo o seu último trabalho discográfico, as "Lamentações do Profeta Jeremias", escritas aproximadamente em 1599 por Emilio de Cavalieri, e que serão apresentadas esta temporada em Lisboa, no âmbito da série de concertos "Em Órbita" patrocinada pela PT: "Nasceu da reflexão em torno da ornamentação vocal usada na época em Roma, onde existia a tradição de nunca executar o que estava realmente escrito na partitura, mas de improvisar sobre ela." O músico vê nesta mudança um indício da crise religiosa da época e do nascimento da "personalidade nas artes", que, na época, surge "a partir da necessidade de expressar as coisas divinas, num momento em que se deixou de acreditar em Deus".