Eu, Soraya
"O Xá era esse avião azul que sobrevoava o céu de Ispahan quando eu era pequena". Num dia de neve aspergiram açúcar na minha cabeça para que a minha união com o imperador fosse doce. Tinha "a idade do meu país" quando me ditaram ao ostracismo. O meu pecado maior: ser mulher e não ser mãe. Depois? "Pela primeira vez na minha vida comprei um gelado de baunilha". Sobraram-me as lágrimas e o título de princesa triste, errante. Era bela, um mito do século XX. Nunca mais voltei ao Irão.
Morri na quinta feira, 18 de Outubro. Não quero falar do meu funeral, nem da minha morte. Bastou-me a vida. Lágrimas? Recebi as minhas, numa primavera de 1958, a última de que me recordo, quando me disseram que não bastava ser mulher para ser esposa, amante. Era o suficiente para ser princesa, mas não para ter a coroa de imperatriz do Irão, a que me ofereceram sete anos antes, num dia em que eu quase caí com o meu vestido matrimonial.Nessa tarde de Março ele, Mohammed Reza Pahlevi, o Xá, chorou. Por mim, por ele, pelos filhos que não nos demos, pelo Irão, pela razão de Estado que lhe travou o amor. Fui eu, a mulher da sua vida? Dizem que sim, mas fizeram de mim uma lenda, o mito do século XX, como se a tristeza me fizesse ainda mais bela, e eu já pouco sei. Houve muitos momentos em que me perguntei para que serviu tanto amor. Para ser feliz, durante algum tempo? Não fui a mãe que a corte, dominada por mulheres, queria. Por isso, fui repudiada. Tão só por isso. Ele, sempre solícito, acompanhara-me numa ansiosa peregrinação pelos melhores ginecologistas da Europa e dos Estados Unidos. Agora acabavam-se as esperanças, restava o desespero, a intolerância dos outros. Infertilidade é palavra proibida para um ventre real. O irmão falecera num acidente de avião e o problema da sucessão ganhara maior urgência para os meus adversários. Ele já se havia divorciado da primeira mulher, Fawzia, em 1948, porque ela apenas lhe havia dado uma menina que às vezes aparece connosco em fotografias. No dia em que ele anunciou oficialmente o nosso divórcio, uma outra mulher, também ela lindíssima como eu, como eu transformada em soberana, Grace do Mónaco, dava o que eu não pudera dar: um herdeiro. Pensava que tinha tudo o que uma mulher poderia sonhar ter. Tudo como num conto de fadas, onde eu seria a princesa persa que se tornava rainha, neste caso, imperatriz. Juventude, riqueza, beleza e um casamento feliz com um dos homens mais ricos e poderosos da terra, o Xá da Pérsia. Eu, Soraya Esfandiary, que entrei para a imprensa cor-de-rosa como a princesa dos olhos tristes, nunca fui a gata borralheira dos contos de encantar. O meu pai, Khalil, era membro da influente e poderosa tribo Bakhtiyari, nas regiões centrais do sul do Irão, com várias jazidas de petróleo. Em 1932 nasci eu. (Ou terá sido 1934? Diverte-me esta discussão sobre a minha idade. Há biógrafos que duvidam da minha data de nascimento. Dizem que eu sou mais nova, que me acrescentaram dois anos quando me casei com o Xá para esbater a diferença de idades, para esconder que eu teria apenas 17 anos e ele 32. Não vou desfazer o mistério. (Afinal, posso ser um mito.) Na minha infância os meus pais foram viver para a Suíça e eu fui estudar para um internato, em Lausanne. Quando tinha 17 anos falavam de mim como tendo uma beleza impressionante, de cabelos escuros e olhos verdes amendoados. Falava alemão, francês, inglês, russo e persa (as revistas do meu país adoram lembrar que eu escrevia as listas de compras em persa...).Soraya, "o meu nome, é o nome de uma constelação, a da Ursa Maior, com a estrela polar, que guia os apaixonados e os nómadas...". Esta e muitas outras coisas escrevi na minha autobiografia, publicada em 1991, "Les Palais de Solitudes", que vendeu mais de 100 mil exemplares. "Não é senão muito mais tarde, quando as recordações se imaginam coloridas, com cheiro, ampliadas pela nostalgia... Os meus olhos abriram-se para a vida em Junho, perto do Verão. Foi em Ispahan, mesmo no coração da Pérsia, do meu país, o Irão... Ao meio dia vinha uma senhora ensinar-me persa. Aprendi, então, a escrever da direita para a esquerda palavras floridas, a língua do meu pai. Pacientemente, Saltanat, assim se chamava a minha mestra, guiava a minha mão para aprender a escrever Soraya. Durante este tempo, amparada pelo meu pai, um príncipe [apesar de eu não ter sangue azul] do deserto destronado, e de minha mãe, uma moscovita, aprendi a andar. A afrontar a vida. Aquela que o destino me tinha preparado...Aos sete anos queria ser detective e lia Sherlock Holmes, Hercules Poirot... Aos nove decidi ser actriz. Gostava de ter sido Scarlett em 'E tudo o vento levou', mas à moda oriental... Na parede da minha sala de aulas havia uma fotografia: a do Xá Mohammed Reza Pahlevi e da sua primeira esposa, a imperatriz Fawzia, irmã do rei Faruk [do Egipto] - e as minhas amigas diziam-me que eu me parecia com ela. Isso agradava-me. Ela parecia-me muito bonita".Ele, o meu marido - sempre me referi a ele como meu marido, "não lhe pude dar um filho, mas dei-lhe o meu coração", - interessou-se por mim através de uma fotografia; contam que ficou espantado com a minha beleza. Eu estava em Londres, em casa de uns tios, para aperfeiçoar o inglês e ele mandou a irmã mais velha, Schamps, investigar. Queria fotos recentes minhas, saber quem era, como vivia. A embaixada do Irão organizou um jantar de homenagem à princesa que pediu que convidassem a jovem Soraya. "Conta-me histórias de Ispahan, dos palácios, do pavilhão das quarenta colunas... Durante dias não me larga e convida-me a ir a Paris. Fala-me do Xá. O Xá era esse avião azul que, quando eu era pequena, sobrevoava o céu de Ispahan".No mesmo dia em que cheguei a Teerão, jantei com o imperador, vestido no seu uniforme de general dos exércitos. Olhámo-nos nos olhos, admirados por ver ao vivo quem só conhecíamos por fotografia. Eu tinha 16 anos (ou seriam 18?) e ele 32. O casamento foi marcado para 27 de Dezembro de 1950. Mas os azares, recuso-me a pensar em maus agouros, começaram logo aí. Fiquei doente, com uma febre muito alta. O que se pensava não passar de uma gripe normal, foi diagnosticado como febre tifóide. Ele levou-me logo ao hospital e chamou para cuidar de mim vários dos melhores médicos, não apenas de Teerão mas também da Europa. Era tanto o amor que me tinha, que todos os dias abandonava o escritório para vir para a minha cabeceira. Houve um momento em que o Xá percebeu que o estado da sua noiva se deteriorava. Eu delirava durante quase todo o tempo e a minha vida parecia estar em perigo até que o médico pessoal do Xá se lembrou de ter lido qualquer coisa sobre um novo medicamento chamado aureomicina. Uma porção desse remédio foi enviado dos Estados Unidos para o Irão num avião especial. Fiquei curada, milagrosamente, diziam. O dia do meu casamento, 12 de Fevereiro, amanheceu com neve. Eu tiritava debaixo do vestido de noiva apesar de todo o peso: o meu traje festivo tinha 80 quilos, eu pesava quarenta. Não desisti. Quase desmaiei mas ergui o rosto e caminhei com a criação de Dior, incrustada de jóias. Na minha cabeça um colar de esmeraldas e diamantes e o açúcar derramado para que a minha união fosse doce. "Não tardei em dar-me conta de que as mulheres da corte possuíam muito poder. Numa palavra, a corte real era demasiado feminina. As irmãs do Xá e a sua mãe, embora oficialmente carecessem de poder, mandavam em todos os assuntos do Estado. Era um regime matriarcal dirigido por Tay ol-Moluk, a mãe do Xá". Ashraf, irmã gémea do rei, tudo fazia para tornar difícil a minha vida. Ela não gostava de mulheres de personalidade forte. Eu não era o seu primeiro alvo. Antes de se apaixonar por mim, Mohammed tencionava casar-se com uma representante da realeza europeia. Na lista das candidatas estavam a princesa britânica Alexandra e a filha de Humberto II, rei de Itália, Maria Gabriela. Esta, numa visita à residência da família real iraniana sofreu as intrigas de Ashraf, que tudo fez para evitar que o seu irmão se unisse a uma mulher de carácter, que lhe pudesse fazer sombra. Este conluio de mulheres boicotavam constantemente os meus dias no palácio. Não se conformavam com o facto de eu não me deixar manipular por elas.Mas a gémea não foi a minha única rival. Havia ainda o "Rasputin do Irão", como lhe gosto de chamar. Um homem que completava o jogo matriarcal. Ernst Prodon era um jardineiro homossexual que havia estudado com o meu marido na Suíça e que, até à sua morte, em 1961, nunca se separou dele. "Amargou-me a vida desde o primeiro dia do meu casamento". Estava sempre presente, intrometia-se mesmo na nossa vida sexual. As suas ingerências, políticas e íntimas, levaram mesmo o Xá a pensar em abdicar. Eu estive sempre do lado do meu marido, mesmo no momento turbulento dos anos 50 que ameaçaram a monarquia do país, quando o primeiro ministro Mossadegh montou uma grande revolução. Os Estados Unidos, que conheciam o que achavam ser o carácter débil do Xá, chegaram a contar com Ashraf para instituir um regime de transição. Eu, sem querer e sem poder fazer nada em contrário, acabei por oferecer a este conluio o argumento de que precisavam. Na corte falam de mim nos corredores, espiam-me, vigiam-me a cintura, calculam os tempos, medem o meu corpo. Um dia, a rainha mãe pergunta, insidiosa: "Quando esperas poder dar um menino ao meu filho?" Ele não pressionava. Pelo contrário, mostrava-se cada vez mais apaixonado e abraçava-me. Há uns anos, o Chefe de Informação do seu gabinete revelou que ele não estava assim tão preocupado com a descendência, pensava até que um filho facilitaria os planos dos seus adversários que se queriam desfazer dele. Mas a minha esterilidade foi o melhor pretexto para o matriarcado pedir o divórcio. A decisão dos "Sete Sábios" da coroa era irrevogável. Eu, que tinha conquistado o mundo com a minha beleza e simpatia, mas que não podia dar o indispensável herdeiro, tinha que ser condenada ao repúdio. Pior: ao ostracismo. O Xá devia procurar outra esposa. "Eu já não tinha 24 anos. Tinha centenas, mil. Tinha a idade da história do meu país... Os meses passavam e com eles deslizava no meu interior a certeza de ter chegado ao fim da minha vida de imperatriz...". "Ele pôs um disco e dançámos sem dizer nada. Ternamente. Como se quiséssemos prender o tempo entre os nossos braços... 'Não temos outro remédio senão separarmo-nos!", disse-lhe eu, fazendo um esforço gigante, maior do que eu, do que a história, para engolir a tristeza que me destruía. "Neva sobre Saint-Moritz, onde devo viver como se nada se passasse. Havia abandonado a cidade a 13 de Fevereiro de 1958, precisamente no sétimo aniversário da nossa boda. Com uma estranha calma tinha arrumado a minha casa, verificado se estava tudo no seu lugar... havia queimado centenas de cartas, reunido fotos, observado tudo para guardar na minha memória..'Voltas rapidamente', disse-me a sorrir no momento da minha partida... 'Pode ser que não volte nunca mais' respondi-lhe... A 14 de Março anunciou oficialmente o nosso divórcio no rádio. Patética alocução entre tremores de voz e soluços".Não quero falar da minha autópsia. Aos 69 (67?) anos pode uma mulher, a rainha nómada como me chamavam, morrer. De causas naturais, disseram os jornais. Encontrou-me, de manhã, a minha empregada no meu apartamento, no 8º bairro de Paris, onde vivia sozinha. Há uns tempos que sentia tonturas e a idade trouxe-me problemas de circulação sanguínea. Vivia numa casa luxuosa nesta cidade onde escolhi pousar. A última oferta dele foi o título de princesa imperial (eu até queria voltar ao meu nome de solteira, Soraya Esfandiary Bakhtiary) além de uma fortuna para levar uma vida fácil. Depois do divórcio tive que aprender a viver. "As minhas lágrimas tinham-se esgotado para deixar no fundo dos meus olhos um brilho intenso". Será que foi por isso que um cantor francês Françoise Mallet-Jorris se inspirou na minha figura de tragédia grega para escrever "Je veux pleurer comme Soraya?""A vida nunca mais seria o que foi. Chams [a irmã mais velha do Xá] nos jardins das Tulherias, a minha reverência a primeira vez que o vi... O mar Cáspio e o meu fato de banho... O nosso primeiro beijo... A rainha mãe e o açúcar espalhado sobre a minha cabeça...". Quis purificar-me, fugir de mim mesma. E comecei a percorrer países. A tocar todos os meridianos do planeta em zigue-zague. A dez mil metros de altura nada nem ninguém me poderia alcançar. Sobrevoar as nuvens era a única forma de não estar neste mundo. Queria renascer mas tinha medo de tudo. Os meus ajudantes de campo tinham-se esfumado. "Como pagar uma despesa? Que gorjeta deixar? Como atravessar uma rotunda? Como evitar os outros carros? Como estacionar o meu? A minha mãe voltou a ensinar-me a andar, a sorrir?..."Em Nova Iorque, "pela primeira vez, comprei um gelado de baunilha... Fazia tudo como se nada tivesse acontecido, mas não resultava. Não passava um só dia em que não estivesse obcecada pelo Irão, onde jamais voltaria. Para um certo tipo de imprensa era uma inesgotável Messalina, quando a verdade é que estava a lutar para sair de um doloroso divórcio que me havia tirado toda a intenção de pensar de novo no amor... Senti-me aliviada quando recebi a notícia do casamento com Farah Diba". Ela deu-lhe quatro filhos (uma das filhas morreu há uns meses com uma overdose). Dizem que Farah sempre nutriu por mim uma especial simpatia. Não sei. Sei que por vezes tive que sair da cidade onde estava porque o imperador e a família estavam de visita no mesmo local. No dia da morte dele, como deposto imperador, no Cairo, a primeira manifestação de pêsames que ela recebeu foi a minha. Vivi no jet-set internacional. Era convidada para todas as festas. Viam-me no Verão em Marbella, no Outono em Paris ou Nova Iorque e em Saint Moritz no Inverno. Nunca mais tive primaveras. Tive muitos pretendentes. Importantes, menos importantes, licenciados, libertinos, playboys, caçadores de dotes. Nada me consolou. Resolvi voltar ao meu sonho de menina. Ser actriz. Fui a estrela de um filme, "As três faces de uma mulher" de Mauro Bolognini. E reconheci o amor. "Franco Indovina, o realizador do filme, estava ali. À minha frente, contando-me o sketch que escrevera. Eu não o escutava. Fiquei sob o seu feitiço. O coração fez qualquer coisa. Noites inteiras para refazer o mundo. O amor à primeira vista". Foi uma história de amor e cinco anos de felicidade cozinhados em fogo lento. Um dia tive pesadelos. A piscina da casa explodia, a casa incendiava-se. Toca o telefone. "Franco morreu" diz-me um familiar. Foi num acidente aéreo, em 1969. Pensei que enlouquecia. Pensei em suicidar-me. Voltei a divagar pelo mundo, nómada, como o meu pai. Nunca mais voltei a Roma. Nem ao Irão. Apenas uma vez, no Egipto, quando estava a viajar pelo Nilo, resolvi, frente a uma tumba simples, prestar uma última homenagem ao Xá, morto em 1980. Nunca mais o voltei a ver. Amava-o muito, mas isso não me impediu de o criticar quando se exilou: "Tinha que ter ficado no Irão e combater o obscurantismo. Era melhor viver combatendo do que morrer na cama de um hospital". Fiz uma oração e voltei para as minhas viagens. "Com o tempo aprendi que todas as feridas se têm que ir curando". Às "vezes surpreendo-me a mim mesma a fazer projectos..."Não quero falar do meu epitáfio. Não sei o que os outros escolheram. Se eu ainda pudesse escrever, o que diria? Que a "a vida esfuma-se, a vida continua" como um dia anunciei numa revista? ou "bonjour tristesse"? Talvez escolhesse apenas "era uma vez...". Soraya é o nome de uma rua em Teerão.* As passagens entre aspas são transcritas da autobiografia de Soraya, em tradução da edição espanhola