As mil e uma vidas de André Malraux
Desde Abril passado tornou-se difícil falar de André Malraux sem se referir à biografia que o jornalista e escritor Olivier Todd lhe dedicou, "André Malraux, Une Vie" (edições Gallimard). Em 700 páginas monumentais, Todd investiga o destino fora do comum e contraditório do autodidacta genial que se tornou num dos nomes mais ilustres da cultura francesa. O seu propósito: esboroar a frágil arquitectura de mentiras com que o artista construiu o seu próprio monumento.Que o escritor-aventureiro tomava os seus desejos por realidades, era sobejamente sabido. Mas o talento real do autor da "Condição Humana", a autenticidade da sua luta anti-colonialista, a coragem autêntica do combatente republicano na guerra civil de Espanha, sempre se sobrepuseram ao jovem saqueador de templos Khmers, à atonia que foi a sua entre 1940 e 1944, durante a ocupação da França pela Alemanha nazi. Olivier Todd não gosta de Malraux e inverte as prioridades de leitura da sua vida, para estigmatizar sobretudo a parte de mentira na biografia do escritor. É verdade que o autor de "Antimemómerias" exagera, imagina, ou simplifica as diversas passagens da sua vida. Sem falar outra língua que a francesa, pretendeu ter comandado uma unidade do Kuomintang. Disse ter recebido conselhos judiciosos de Estaline, que nunca encontrou. Disfarçou o alcoolismo dos últimos anos em ataques de paludismo. Mas mesmo mitómano, mesmo maníaco-depressivo - "como De Gaulle", frisa Olivier Todd -, Malraux é o protagonista de uma prodigiosa aventura humana. De origem humilde, sem estudos universitários, escreveu uma curta obra que marcou várias gerações com o cunho do humanismo, e acabará sendo um ministro da Cultura arreado de títulos de doutor "honoris causa". Nascido a 3 de Novembro de 1901, em Paris, e crescido num arrabalde da capital, Malraux será educado por três mulheres, a mãe, uma tia e a avó, num pequeno apartamento contíguo à mercearia que lhes permitia viver num conforto relativo. O liceu Condorcet recusa-lhe a matrícula e priva-o do precioso "baccalauréat", o diploma do ensino secundário sem o qual não se é nada em França. A partir desse momento, o jovem sequioso por uma outra vida está condenado a traçar o seu destino à força de punho. Sem diplomas, Malraux acumulou erudição num alfarrabista de Paris e o casamento com uma alemã cosmopolita e inteligente, Clara Goldschmidt, dar-lhe-ia um dote, depressa delapidado. Só um caracter de ferro faz então eclodir um talento que vem do fundo da escala social, o que não era fácil de impor na época. E é assim que, aos 20 anos, publica o seu primeiro romance, "Luas de Papel". Nessa altura, André Malraux, já era director literário das edições Simon Kra, e os seus amigos chamavam-se Jean Cocteau, Paul Morand, Max Jacob.O futuro autor de "O Museu Imaginário", verdadeira ode aos artistas de todas as civilizações que atravessaram os séculos, é julgado em 1923 pelo roubo de estátuas Khmers num templo da Indochina. Mas depois volta à Ásia para publicar um jornal anti-colonialista. A "Condição Humana", esboçada numa viagem à China, vale-lhe o prémio literário Goncourt de 1933. Malraux tem 32 anos e está nos píncaros da glória. O nazismo cresce na Alemanha e Malraux alinha com os antifascistas e com os comunistas, que foram seus "companheiros de estrada" por uns tempos. Em 1936, rebenta a guerra civil de Espanha e Malraux cria a esquadrilha aérea "España", que lhe inspira o romance "L'espoir", mas mantém-se inactivo durante a Ocupação. E, em 1994, cria a Brigada Alsácia-Lorena, à cabeça da qual se imagina um novo Lawrence da Arábia. Ministro da Cultura do general de Gaulle, viria a salvar Paris dos apetites pantagruélicos dos promotores imobiliários. Criou Casas da Cultura por toda a França, ordenou a restauração de monumentos, começou a construção de museus, fez encomendas de Estado às artes plásticas, abriu linhas de crédito à produção cinematográfica. Mas, em Maio de 1968, o antigo admirador do Kuomintang não compreendeu a revolta dos herdeiros de Mao Tse Tung. Convencido, como Napoleão Bonaparte, que "aventura, doravante, é a política", morre consumido pelo álcool, excitantes diversos e trabalho, em 1976. Vinte anos depois, foi trasladado para o Panteão, onde repousam "os grandes homens da nação". E mesmo depois de lida a biografia pouco elogiosa de Olivier Todd, André Malraux continua a forçar a admiração pela sua vontade de ferro e pelo seu descaramento.