O ressentimento de um ocidental
Quanto mais a vida é infame, mais o homem se agarra a ela, disse Balzac. Mas, quando um europeu vai para a Tailândia fazer turismo sexual, a que é que se está ele a agarrar? Ao baixo preço das contrafacções Gucci, a uma mulher barata ou ao único futuro visível para a Humanidade? Respostas em "Plateforme", o livro-escândalo da rentrée francesa.
Há um enorme laçarote de seriedade e respeito a enfeitar a figura do escritor francês Michel Houellebecq. O caso não é para menos. Os seus livros são tidos como um dos mais distintos depoimentos sobre a falência moral da Europa burguesa, o estado miserável das nossas vidas socio-sexuais, a incomunicabilidade em que têm de viver as pessoas sensíveis e frágeis como nós, a morte da alma, o consumismo desenfreado, e patati patatá. Incrustrado na má consciência e na culpabilidade que fazem parte do estado psicológico da sociedade ocidental, desenvolveu-se um palpável masoquismo cultural. Para a maior parte dos artistas, é inaceitável que na lógica do capitalismo não possa haver estados de alma mais melancólicos, logo a sociedade em que vivemos é a mais estúpida e desumana alguma vez criada. Ou seja, os artistas têm mentalidade religiosa, o seu tema preferido é a "crise de valores" e nós somos todos anjos caídos.Uma das razões para o tremendo sucesso dos romances de Houellebecq é que se lhes atribui esse valor de depoimento romântico anti-capitalista. É verdade que qualquer livro o pode ter se for convincente e bem argumentado, mas convém lembrar que o primeiro grande sucesso de Houellebecq, "As Partículas Elementares" (Temas e Debates), aproveitava o raciocínio científico sobre certos dados da biofísica para nos convencer de que algumas ideias adventícias sobre a sociedade humana - altamente discutíveis - tinham a mesma base científica. O truque era básico mas passou despercebido, o livro foi levado extremamente a sério e considerado, no seu aparente ultra-realismo, como um sucessor de Balzac. E de Nietzsche, já agora, nas suas exigência e arrogância morais. Houellebecq não corou perante os elogios, e resolveu até pedir emprestado para o "incipit" do seu recente "Plateforme" uma formulação moral de Balzac: "Quanto mais a vida é infame, mais o homem se agarra a ela, transformando-a então num protesto, em vingança contra tudo o que lhe acontece." É bonito, pode dizer-se, embora como divisa tanto se possa aplicar à estruturação mental psicótica do poderoso Bin Laden como ao homem comum, ele sim vítima de todos os pobres acontecimentos da sua vida infame. No caso presente, ou seja, em relação ao que Houellebecq quis pôr no seu romance, não parece que seja a vida das personagens que sirva para grandes demonstrações; é mais o próprio livro, a literatura, que serve a Houelllebecq como forma de protesto e para se vingar da vida que lhe calhou em sorte.Pode parecer uma afirmação temerária, e pode também parecer abusivo como crítica, mas a verdade é que em questão de abuso e temeridade ninguém se pode comparar a Houellebecq. De facto, é o tom moralista das acusações do escritor que justifica e quase exige este tipo de crítica. Houellebecq tem tanto de caso clínico como de fenómeno literário. Os seus livros são lidos não por serem brilhantes literariamente (claro que também não são maus), mas por serem insolentes, politicamente incorrectos, por acusarem os pais de tudo e a sociedade de tudo e mais alguma coisa. Parecem escritos por uma criança zangada e talentosa, dotada simultaneamente com a riqueza de análise que permite a observação dos indivíduos isolados e com a capacidade de síntese que permite trabalhar dados científicos e sociológicos e extrair conclusões.Em "As Partículas Elementares", a culpa da infelicidade sexual, trágica, das duas personagens centrais da história, era inteirinha do movimento de libertação sexual dos anos 60 e dos pais liberais e egoístas que ela produziu. Em "Plateforme", a análise nem vai tão longe. A culpa é das roupas de marca, porque sem necessidade de comprar roupa de marca pode perfeitamente viver-se mais feliz na Tailândia e em Cuba, onde o sexo é barato e de muito melhor qualidade. O livro, francamente, resume-se a isto. Na sua essência, ele afirma que as nossas sociedade criam gente infeliz porque sim e porque as mulheres são ambiciosas. Porque têm profissões liberais, vão a bares de sado-masoquistas e de intercâmbio inter-casais e porque já não têm uma sexualidade "intacta" para oferecer aos homens. Uma alternativa frutuosa é ler Houellebecq como se ele fosse um autor cómico. Os seus desenhos das pessoas são saborosos e têm a crueldade, ela sim "intacta", da observação infantil. As situações tendem para o caricato e para salientar o pior lado dos humanos. As suas observações sobre diferentes raças e credos religiosos são divertidas, mas pertencem ao nível afrontoso da anedota de taberna - segundo uma das personagens, e passa-se a citar os conceitos, pelo deserto só se interessaram até hoje crápulas e pederastas, os homens árabes só sabem sodomizar camelos e enrolar panos de cozinha na cabeça, as mulheres árabes ficam gordas como umas vacas, os chineses são uns porcos e, de qualquer forma, antigamente é que era bom porque o colonialismo branco, no fundo, no fundo, até tratava os pobres pretos e amarelos com um paternalismo carinhoso. Citámos.Houellebecq é um sucesso por ser, ele próprio, uma face descarada - e talentosa - do pior da nossa civilização. Ele mostra aflição e falta de jeito em relação às premências da vida sexual, mas nunca prescinde de descrever de forma minuciosa (e enfadonha) os repetidos, repetidíssimos actos sexuais. É abjeccionista na descrição das relações humanas, mas denota uma total incapacidade para pensar com lucidez auto-reflexiva sobre a realidade interna de emoções e afectos dos seus heróis masculinos. Intercala dados sociológicos, resultados de sondagens e outras derivações de um espírito mais ou menos científico para justificar um simplismo racista e reaccionário exercido contra o que tem de ser considerado como avanços e benefícios do mundo ocidental - direitos do homem, níveis de vida e de cultura, liberdades individuais e a gloriosa possibilidade de se viverem ambivalências morais sem contaminação religiosa. Ou seja, Houellebecq acha que quanto pior melhor, antes nada do que alguma coisa, antes o colonialismo do que as organizações humanitárias. Quanto ao terceiro-mundo, apesar do obscurantismo e da porcaria, se continuar a ter mulheres boas e baratas, óptimas praias e requintados locais turísticos, bem pode vir a ser o futuro dos trânsfugas ocidentais assustados com as consequências morais do preço das malas Gucci e das roupas do Christian Lacroix. O Islão, por outro lado, diz ele em duas penadas, com uma visão rara, vasta como a de um cego de nascença, "está condenado; basta pensarmos nisso para que o facto surja como uma evidência". Ou seja, Houellebecq representa esplendorosamente uma das perversões infantis do racionalismo. "Penso, logo o que eu penso tem de existir". O racionalismo transformado em aborto místico - entre o Islão e Houellebecq, afinal a distância filosófica não é assim tão grande. Quer isto dizer que o livro é péssimo? Não, pelo contrário. Pode ser às vezes irritante e mesmo ideologicamente abjecto, mas é uma proeza na mistura dos seus suculentos ingredientes: o sexo, a política com derivações sociológicas e filosóficas, a má-língua e a provocação. E os capítulos finais são notáveis. Tal como em "As Partículas Elementares", Houllebecq usa o melhor do seu talento literário para fechar o livro. A sua misantropia guerreira despe a cota de armas e apresenta-se então sem rodeios nem desculpas, revelando personagens cujo verdadeiro drama é serem tão infelizes na solidão e estarem tão desiludidos com o insucesso do amor. É pungente como, apesar das intenções agressivas e grosseiras de Houllebecq, apesar da sua má-educação que parece tão radical como infantil, ele leva tão a sério o amor ou, pelo menos, vê tão radiosamente a sua possibilidade. Isso coloca-o, ironicamente, ao lado dos escritores utopistas e dá uma dimensão calorosa- a única visível - aos seus livros que, de outra forma, são apenas tão contemporâneos, tão desabusados, tão masoquistas, tão trash chique.