Tudo o que sempre desejou saber sobre os Padrinhos mas nunca ousou perguntar
A Trilogia "O Padrinho", a grande tragedia americana por Francis Ford Coppola, está desde hoje disponível em Portugal em DVD. É a melhor edição de um filme em DVD que conhecemos. A uma transcrição perfeita em quatro discos - desdobrando um dos filmes em dois discos -, acrescenta-se o disco número cinco, com mais de três horas de extras.
É hoje posta à venda a trilogia de "O Padrinho", de Francis Coppola, naquela que é a melhor edição de um filme em DVD que conhecemos. A uma transcrição perfeita em quatro discos - desdobrando um dos filmes em dois discos -, acrescenta-se o disco número cinco com mais de três horas de extras, convenientemente traduzidos em português. Pela sua centralidade e importância, apetece chamar-lhe: "O Padrinho IV". Aliás, a incorporação de posteriores "notas explicativas" tem pelo menos um antepassado ilustre em "O Som e a Fúria" de William Faulkner: para uma edição de grande tiragem, nos anos 40, Faulkner decidiu "explicar" muitos dos mistérios do seu romance-mosaico em quatro partes e quatro pontos de vista. A partir daí, as notas do autor passaram a fazer parte do conjunto, como se se tratasse uma quinta parte. É também assim no caso desta edição de "O Padrinho", reunindo-se um número variado de documentos que contextualizam e completam a visão sobre um dos filmes mais influentes e mais perfeitos do património hollywoodiano.O sentido da saga. A primeira contribuição passa por um longo "Making of" de mais de uma hora, que começa por dar conta das dificuldades sentidas na rodagem do primeiro filme da trilogia (1972). Coppola menciona o facto de o estúdio desconfiar dele e manter sempre um realizador suplente na expectativa. A Paramount teria, ainda, resistido ao "casting" de Marlon Brando, obrigando-o a fazer testes, que Coppola transformou em ensaios de caracterização (Brando apareceu com um Kleenex para pôr na boca e graxa para o cabelo). No entanto, a grande luta foi em torno de Al Pacino - que estava longe de ser uma estrela -, para o papel de Michael Corleone (o estúdio queria Redford ou Ryan O'Neal, tendo James Caan, De Niro ou Martin Sheen sido testados para o papel). A teimosia de Coppola triunfou.Vemos abundantes materiais desses testes (que custaram 400 mil dólares), ficamos a saber da caricatura que Robert Duvall fazia dos métodos de concentração de Brando, observamos como a personagem de Talia Shire vai ganhando contornos mais violentos, a pedido do estúdio."O Padrinho II", com catastrófica recepção na antestreia, aproveitou Robert de Niro para uma arrojada antecipação do Brando jovem. E este, que deveria fazer um "cameo", não compareceu, obrigando Coppola a uma artificiosa figuração da ausência: na sequência da festa de aniversário diz-se que ele chegou e opera-se um corte.No segmento do documentário dedicado à parte III, destaca-se o sentido da saga, a mais-valia familiar do filme: mais do que nos anteriores, reúne-se aí o clã Coppola -Talia Shire, a irmã, Sofia Coppola, a filha, Carmine Coppola, o pai, até a mãe faz figuração - sob pretexto dos Corleone. O autobiográfico cola-se ao ficcional numa estranha, mas produtiva, interacção. Mesmo a personagem de Diane Keaton parece ecoar a mulher de Coppola, Eleanor, a "outsider" WASP no mundo ítalo-americano.Coppola, que resistiu ao projecto (dizia que, depois das duas primeiras partes, só se fizesse uma paródia tipo "Abbott e Costello encontram o Padrinho"), acabou por ceder no momento em que vislumbrou uma ideia dramática, mantendo Michael como o herói ("uma espécie de Nixon") no momento da sua decadência e morte. Aliás, o título preferido pelo cineasta era "A Morte de Michael Corleone" - foi a Paramount que insistiu, por razões comerciais, em "O Padrinho III".Por sua vez, o director de fotografia, Gordon Willis, salienta a "sensação deprimente de 'déjà-vu'", os Corleone como a extensão trágica de um número de circo familiar. Com Akira Kurosawa enquanto mestre da moderna violência fílmica, Coppola explana, na sua tragédia americana, a possibilidade de contornar o óbvio: atinge o paroxismo do ritual católico do sangue, na cena em que é usado o vidro de um par de óculos como "arma branca"; faz o exorcismo do passado siciliano com a "Cavalleria Rusticana", que o pai havia dirigido no teatro. Documentário, memória e saga cruzam-se num fascinante torvelinho de paixões.Em "On Location", Dean Tavoularis, o director artístico, mostra a vantagem de substituir as filmagens em estúdio pela transformação do Lower East Side na Little Italy do passado, substituindo tabuletas e criando uma geografia de papel e tinta, decalcada nas ruas de Manhattan. O documentário ilustra uma espécie de romagem, usando metragem de época, a preto e branco. Apesar dos inconvenientes criados à população nova-iorquina, expropriada das suas casas durante o dia, ganhou-se na saga uma textura única e um rigor singular para além dos cenários e dos fingimentos.Em "Coppola's Notebook" evidencia-se o método de ligar o filme à obra literária, pela construção de uma espécie de grande "bíblia", que, se não substitui ao guião, antes o completa: trata-se de uma edição do livro de Mario Puzo, abundantemente anotada e sublinhada pelo realizador, precioso instrumento de trabalho que regista impressões de leitura, relações com os textos para cinema de Elia Kazan, influências visuais de Hitchcock ou modismos da fala ítalo-americana.O "capítulo" sobre a música usa uma gravação áudio de um encontro de trabalho com Nino Rota (ele próprio ao piano), o compositor de Fellini e Visconti, ilustrada por fotos e excertos dos filmes. O "subcapítulo" dedicado a Carmine Coppola conta com uma entrevista e pedaços de uma gravação ao vivo do "score", em 1990, e historia o êxito tardio, mas merecido, do pai do cineasta: participação empenhada na trilogia, um Óscar (nomeação para outro pela melhor canção no "Padrinho III", cuja não atribuição o teria vitimado), a fabulosa partitura para a obra-prima muda de Abel Gance, "Napoléon". No breve ensaio sobre o guião, temos um depoimento curioso de Mario Puzo, explicando que a ideia para o livro teria vindo do facto de o editor do seu anterior "The Fortunate Pilgrim" lhe ter pedido "mais Mafia". Em diálogo dialéctico, Coppola fala do respeito pela obra literária, dando origem ao então original título "Mario Puzo's The Godfather" - embora reclame a autoria da história moderna e muitas das ideias visuais do filme. Há ainda uma preciosa gravação áudio, dando conta de uma reunião entre os dois, para preparação da terceira parte, em 1989, em Reno.Gordon Willis fala do seu trabalho fotográfico, explicando as razões da subexposição e do "chiaroscuro" para recriar ambiências de Rembrandt, em dominantes de amarelo e vermelho, e para aproveitar a caracterização de Brando, usando uma "luz vertical".As cenas adicionais (34 ao todo), muitas delas integradas na série televisiva remontada The Godfather Trilogy -1901-1980, possuem interesse e duração muito variável. Destaque-se a quarta cena, que, supostamente autobiográfica, figura Carmine Coppola, em criança, no armazém de armas do pai, Augustine (avô do cineasta), a tocar flauta para os mafiosos da ficção.Não perca ainda fotografias, biografias (atenção, a árvore genealógica dos Corleone dá acesso às biografias dos actores que os interpretam), e não evite o genérico DVD, no fim do qual há um excerto com o "pastiche" de "O Padrinho", na série Os Sopranos.Igualmente precioso e de "beber" a cada palavra é o comentário, de muitas horas, de Coppola que acompanha cada cena de cada filme: como exemplo da riqueza de informação, vejam-se as cenas 14, 18 e 19 de "O Padrinho III". Na pista áudio 2, o realizador junta memórias das filmagens na Sicília, comentários históricos e factuais, sobre o uso da figura do Papa João Paulo I na ficção, e adiciona anedotas de produção ao contar como a Paramount o obrigou a puxar pelo lado de "thriller" do filme para assegurar uma bilheteira forte.Tudo isto e muitíssimo mais encontrará nesta incontornável edição, numa belíssima caixa preta com tudo o que sempre desejou saber sobre "O Padrinho" e nunca ousou perguntar.