Belgais, o lugar de todas as artes

As inúmeras oliveiras e eucaliptos parecem indicar o caminho que conduz à casa de Maria João Pires, na Herdade de Belgais, perto de Castelo Branco. O autocarro pára vezes sem conta nos altos e baixos do percurso, onde a lama é uma presença constante, ocasionada pelas chuvas de um Outono ainda principiante. A casa ainda não se vê, mas imagina-se. E as expectativas realizam-se quando se avista o portão de ferro e se entra pelo pátio de entrada. Desde logo, os ínfimos pormenores saltam à vista, desde o lago repleto de peixes vermelhos até às tochas, que iluminarão mais tarde a noite em Belgais.Foi neste cenário que Maria João Pires e a sua empenhada equipa de cerca de 40 pessoas apresentou a mais de uma centena de convidados (das quais 76 eram jornalistas de diversos países) o Centro para o Estudo das Artes. Um espaço onde a criatividade e a imaginação serão os mestres por excelência. Porque o centro é, em tudo, o oposto de uma escola tradicional, na qual a disciplina e a hierarquia mestre-discípulo imperam por convenção. Trata-se de um projecto imaginado por Maria João Pires há muito tempo atrás, ao reflectir sobre os problemas do ensino na música. Mas o Centro não tem como objectivo ensinar, no sentido académico do termo: o fim é oferecer um ambiente propício à procura individual no que diz respeito à criação artística, desde a música até às artes plásticas. Depois de muitas ameaças que pairavam sobre o projecto, o primeiro curso deu-se há um ano atrás, em Agosto de 2000, seguido do primeiro concerto, em Dezembro do mesmo ano. A quinta de Belgais divide-se em três alas: a residência propriamente dita, a sala de concertos e uma área nova, onde se encontra o estúdio de gravação da Deutsche Grammophone, que ainda está em fase de conclusão. E há também um extenso espaço de natureza (cerca de 200 hectares) que rodeia a quinta, na qual os cães e os póneis passeiam despreocupadamente, alheios à actividade humana. É evidente uma preocupação com a estética do lugar, do tipo caseiro, rústico, artesanal. As cortinas dos quartos e das salas são feitas à mão, as velas florescem por todos os cantos, as (poucas) luzes artificiais do interior da casa são baixas, conferindo um toque de mistério e, ao mesmo tempo, de familiaridade ao ambiente.Em cerca de um ano de actividade, o Centro desenvolveu no total cerca de sete cursos, com a duração de, aproximadamente, uma semana, e acolhendo no máximo oito alunos, seleccionados mediante resposta a um longo questionário de 18 perguntas. Os cursos, como explicou Caio Pagano, um dos membros da direcção artística a par de Maria João Pires e Jérôme Granjon, "são independentes entre si, havendo um coordenador específico para cada um". Até agora, já foram leccionados cursos sobre a frase, a gravação de música ou o canto, entre outros. Os encontros baseiam-se no conceito de troca mútua de ideias entre os participantes e os coordenadores, com o fim de proporcionar uma nova consciência da actividade artística. "Temos um diálogo muito individual com cada aluno, tentando explorar simultaneamente novos métodos de ensino", frisou Caio Pagano. Para além dos cursos, outra grande aposta de Maria João Pires no Centro de Belgais serão as actividades desenvolvidas com as crianças. Manuel Veiga, responsável pela coordenação dos projectos que as envolvem, apontou três princípios a ter em mente nesse tipo de actividades: "o amor à arte, a natureza e a experimentação". O Coro, cujas audições terão início ainda esta semana, será composto por crianças da região da Beira Interior e funcionará como "uma espécie de cartão de visita do Centro". Os ateliers de artes plásticas (onde os mais pequenos poderão dar largas à imaginação e criar o que bem lhes apetecer) e as oficinas de poesia completam o leque das actividades dedicadas às crianças, estando ainda prevista a criação de uma escola primária bilingue (inglês e português), embora "ainda não haja infraestruturas suficientes para este projecto", afirmou Manuel Veiga. "Esperamos que o problema do acesso ao Centro esteja resolvido até ao final do ano. Neste momento, é quase uma aventura viajar até aqui", acrescentou.Questionada pelo PÚBLICO acerca da avaliação de um ano de actividade do Centro, Joana Pires, responsável pelas relações públicas, descreveu-o como "positivo, em termos gerais, porque conseguimos realizar muitos dos projectos". Apesar de ainda não terem tido tempo para "arranjar um escritório decente...". No que diz respeito ao financiamento, após um passado problemático, "conseguimos que o Ministério da Educação pagasse os 200 mil contos [um milhão de euros] em dois anos". Joana Pires referiu ainda que o dinheiro para este ano acabou por chegar ao Centro por outras vias, nomeadamente através da Câmara Municipal de Castelo Branco e dos patrocínios da Deustche Grammophon, Galp, Yamaha, entre outros.À parte dos cursos e ateliers, Belgais foi também o cenário escolhido para a gravação do novíssimo disco de Maria João Pires, "Moonlight", lançado ontem em Portugal pela Deutsche Grammophon, onde interpreta algumas das Sonatas de Beethoven. Apesar dos diversos concertos onde interpretou obras deste compositor, só agora é que a mais célebre pianista portuguesa sentiu que era o momento ideal para gravar Beethoven, aproveitando a envolvência especial da região. Aliás, Maria João Pires descreve bem, no documentário sobre a criação do disco, a escolha de Belgais para o efeito: "Não procuro conforto quando gravo aqui em Belgais. Procuro a atmosfera certa para que as coisas se tornem reais". O design do disco apresenta ainda curiosas particularidades, desde o material biodegradável da embalagem até à semi-lua de cortiça que liga o CD à capa, numa alusão ao título do disco.

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