O regresso dos heróis?

Quer se queira, quer não, os protagonistas/heróis marcam o universo da banda desenhada. Em "Heróis da BD" Carlos Pessoa e Nuno Franco sugerem algumas boas pistas, portas de acesso a outros universos. O resto são critérios.

Para falar de banda desenhada todos os espaços são bons, todos os pretextos óptimos. A noção pode ser difícil de entranhar por quem se interessa por cinema ou literatura, formas com lugar garantido no caldo da Cultura. Não é o caso da BD. Presa num limbo variavel que apenas se agita em momentos particulares (os Festivais da Amadora, Porto e Lisboa, por exemplo), à BD resta espreitar oportunidades. Foi o caso do desafio da PÚBLICA (revista dominical do PÚBLICO) aos jornalistas e críticos Carlos Pessoa e Nuno Franco. Uma página por semana, tendo como mote (definido pelos próprios) heróis que marcaram os quadradinhos. Agora coligidos num volume de arejado grafismo, esses textos constituem o miolo de "Heróis da BD". Como notam Pessoa e Franco, escrever sobre BD sem falar de heróis, que surgem repetidamente de aventura em aventura, é quase um contra-senso. Infelizmente, acrescente-se. Porque tal critério implica, no leitor ocasional, o vislumbrar automático de lugares-comuns relacionados com actividades heróicas, monodimensionais, escapistas. Quando a BD não se resume a isso. Basta pensar num exercício semelhante feito em termos de cinema ou literatura. Quais as selecções possíveis, os heróis eleitos? Indiana Jones? Luke Skywalker? Miss Marple, Pepe Carvalho, Harry "Rabbit" Angstrom? Significativos, uns mais do que outros. Mas representativos das suas formas narrativas como um todo? Mais lógico seria citarem-se trabalhos, autores. Com a ressalva de que muitas obras se estendem por episódios, a BD merece o mesmo. Diga-se que Pessoa e Franco conhecem o espartilho, e sabem libertar-se dele. "Akira" de Otomo, por exemplo, é "apenas" isso, uma obra fulgurante (longa, é certo, mas não se considerarmos os códigos da BD japonesa) da qual a personagem-título nem sequer se pode considerar verdadeiro protagonista (Kaneda e Tetsuo dividem com ela o palco). Claro que, e aceitando-se o critério (defensável) dos autores, nada é mais estimulante do que listas e selecções. A razão é óbvia. São sempre, mas sempre, incompletas e discutíveis. E, nessa perspectiva, "obrigam" leitores a refazer o exercício na ânsia de uma selecção perfeita, utópica. A este respeito nada de ilusões: comentários aos critérios pessoais de outros são apenas reflexo de um outro critério, não menos pessoal.Logo à partida é interessante notar que as opções de Franco e Pessoa seguem de muito perto cânones que nos habituámos a reconhecer, não só em Portugal. A grande divisão é entre franco-belgas e norte-americanos; com um espanhol, dois italianos, dois argentinos, dois japoneses, e cinco portugueses à mistura. Mais: a chamada "BD clássica" resume-se, fora um ou outro incontornável ("Tintin", "Spirou"...), ao mundo das "strips" e "comics" norte-americanos, com as restantes escolhas a incidirem na contemporaneidade. É evidente que a operação tem de ter danos colateriais, como toda a BD inglesa e personagens clássicas das restantes ("Quim e Manecas", "O Boneco Rebelde", "Simão Infante", para apenas citar alguns portugueses). No entanto, nada há a dizer em relação às presenças nacionais. Gonçalves, Louro, Saraiva, Relvas são inquestionáveis, Fazenda e Marte mais do que promessas. De fora fica, por exemplo, José Carlos Fernandes, o mais espantoso autor português. Que, por ser mais anti-autor, apenas cria, como é óbvio, anti-heróis. Noutra perspectiva, da brilhante dupla Nuno Saraiva/Júlio Pinto resgata-se o formato mais clássico, e a criação menos interessante, pese embora o delírio inicial.É evidente que os autores concentraram escolhas naquilo que reconhecem como importante e, mais ainda, de que gostam. Não é difícil, de resto, distinguir uma coisa da outra. Veja-se, nomeadamente, o esforço efabulatório de Carlos Pessoa para que o leitor penetre nos universos ficcionados que descreve. A forte carga de assombro que se vive nessas entradas contrasta com outros textos de cariz mais informativo. Por outro lado, os autores (sobretudo Nuno Franco) fazem um trabalho verdadeiramente notável onde era necessário: na defesa de autores de grande qualidade, que permanecem mais ou menos desconhecidos do público português. Não seria preciso ir buscar Nikopol para falar de Bilal, Giuseppe Bergman para encaixar Manara, John Difool para glosar Moebius, Robick ou Wappendorf para justificar a inclusão de Schuiten/Peeters... São autores de espaço bem vincado, dispensam o favor. Mas o mesmo não se aplica a De Moor/Desberg, Tanaka, Jeff Smith, Floc'h/Rivière, Oesterheld/Breccia, Fred, Chris Ware, Frank Robbins, Ben Katchor. Porque é sobretudo isso, repita-se, que obras desde género constituem: oportunidades. E não deixa de ser evidente que os "heróis" citados são excelentes pretextos para discutir os respectivos autores. É muito difícil falar do Ware de "Jimmy Corrigan" fora da indispensável "ACME Novelty Library", como é difícil confinar a força de Tardi a "Adèle Blanc-Sec". Outros a quem o tempo de antena aproveitaria? Muitos, demasiados. "Jules Corentin Aquefacques" (Mathieu), "Lapinot" (Trondheim), "Astroboy" (Tezuka), "Akbar & Jeff" (Matt Groening, sim, o dos "Simpsons"), "Hellboy" (Mignola), "Little Annie Fanny" (Kurtzman), "Frank" (Jim Woodring)... Se a subversão estivesse na ordem do dia, era de sugerir ainda o herói mais complexo de todos: o autobiográfico protagonista-autor. "Herói" de um género que Robert Crumb marcou indelevelmente, e que contagiou o mundo, com resultados, por vezes, brilhantes (David B., Baudoin, Chester Brown, Spiegelman, Nakazawa....). Note-se que a novidade não é um valor em si mesmo, e "Caroline Baldwin" destaca-se por estar muito distante das outras personagens, em termos de representatividade e espessura. O facto de ser seropositiva não chega para que mereça a "honra"; nem nisso a personagem foi pioneira. Jim Valentino lançou "Shadowhawk" anos antes, baseando-se numa premissa semelhante: como é que um (super)herói agiria, se se soubesse frágil, contaminado, condenado? A morte de "Captain Mar-Vell" (cancro) já dera o mote, prolongado, até ao absurdo, na ridícula "morte-ressureição" de "Superman".Os superheróis são, aliás, um bom ponto de partida para discutir a escolha das personagens de "grande público". Em selecções deste género convém não esquecer que, uma vez mapeadas certas referências-chave, a distância entre escolhas assumidas e escolhas menos conseguidas diminui, a protecção do critério pessoal não é impermeável. Isso é tanto mais verdade, quanto mais perto do "mainstream" nos situarmos. Entende-se mal, por exemplo, que da panóplia de superheróis apenas se refiram "Superman" e "Batman", da DC Comics. Para além destes pioneiros, era justo citar o trabalho de Stan Lee, Steve Ditko e, sobretudo, Jack Kirby, nos anos 60. A introdução de superheróis que, por dentro, pouco tinham de super (eram, apenas, humanos, com as alegrias e angústias inerentes) revolucionou o panorama dos "comics", destacando-se "Spiderman", "Fantastic Four", "X-Men", entre outros. Curiosamente, estes heróis da Marvel Comics eclipsaram os da DC, se pensarmos só em quadradinhos. Mas o fascínio da dualidade nocturno/diurno em "Batman"/"Superman" mantém-se no grande público, em grande medida pela ligação a outros meios (séries de TV, desenhos animados, filmes). Por outro lado, era interessante referir a reinvenção mais recente dos "comics" generalistas, de que é maior emblema (em termos de um "herói") a série "The Sandman", de Neil Gaiman. Outras opções levantam dúvidas similares. "Calvin" e "Peanuts" sim, sempre. Foram séries que marcaram o imaginário nacional. E "Mafalda"? Já que se fala da influência fundamental de Milton Caniff, era um bom pretexto para introduzir "Terry and the Pirates" ou "Steve Canyon". Caniff que também marcou uma das maiores personagens de sempre: "The Spirit", herói que funcionava muitas vezes como pretexto para as espantosas fábulas urbanas de Will Eisner. E citar "Astérix" sem "Lucky Luke"? Porquê? Porque Morris transformou o "cowboy"-mais-rápido-do-que-a-própria-sombra numa fábrica de álbuns a metro após a morte de Goscinny? Nessa perspectiva é curioso verem-se repetidos os eufemismos com que habitualmente se cauciona o desastrado trabalho a solo de Uderzo.Uma última condicionante que marca "Heróis da BD" relaciona-se com a sua própria organização. A ordem alfabética é, regra geral, má conselheira em obras que não se pretendam enciclopédicas. Uma divisão temático-histórica teria sido preferível, para que textos próximos se pudessem complementar. No caso dos heróis americanos seria útil aprofundar o facto de, na expressão feliz de Nuno Franco, serem definidos por "mil autores". Tal trabalho de integração/revisão ajudaria a concretizar em livro um conjunto de textos independentes, com as marcas de duas vozes distintas. Alguns lapsos talvez fossem então evitados, como referir-se a estreia de "Superman" na revista "Detective Comics" num texto (errado), e na "Action Comics" noutro (correcto). Assim sendo, recomenda-se a leitura em "staccato", cada capítulo uma excelente pista autónoma para a respectiva parcela de um mundo que, como todos, é muito mais fascinante do que qualquer texto que se possa escrever sobre ele, directa ou indirectamente. Usem "Heróis da BD" como guia. Intriguem-se com aquilo que, segundo o vosso critério pessoal, é intrigante. E procurem as obras, os autores. Os Heróis, se quiserem. O assombro virá depois. Naturalmente.

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