José Ruy: O último artesão dos quadradinhos
Doze edições. Dezoito mostras programadas no programa deste ano. Seis espaços de exposição. Entre 20 a 30 mil visitantes previstos. É na Amadora, chama-se Festival Internacional de Banda Desenhada e abre as suas portas na próxima sexta-feira, dia 19. O Mil Folhas antecipa os destaques.
A sua carreira na banda desenhada, ilustração e artes gráficas prolonga-se por quase 60 anos, tempo de uma trajectória que ainda continua a surpreender pela sua vitalidade. José Ruy é um dos destaques maiores do Festival.Filho da Amadora, onde nasceu em 1930 e continua a viver hoje, José Ruy é homenageado este ano pelo Festival Internacional de BD daquela cidade. É ele, aliás, o grande destaque português de entre programação rica e diversificada da décima segunda edição do certame, na qual a Câmara Municipal investiu cerca de 48 mil contos.É conhecida no meio a resistência de José Ruy à ideia desta exposição retrospectiva da sua vasta obra, cuja realização tem feito parte da agenda das últimas edições do Festival. Mas era também impossível adiar por mais tempo a concretização deste projecto em que se passam em revista quase 60 anos de uma longa e diversificada carreira. O local é a Galeria Municipal Artur Bual, onde já estiveram presentes no passado Edgar Pierre Jacobs (1997), Eduardo Teixeira Coelho (1998), José Garcês (1999) e Augusto Trigo (2000).Os organizadores prometem algumas boas surpresas para esta exposição, que abrangerá todos os aspectos do trabalho de José Ruy, e não apenas a sua contribuição para a banda desenhada. Esta metodologia vai ao encontro daquilo que tem sido uma "marca" inconfundível da obra do "artesão da BD", como lhe chamou o estudioso e crítico António Dias de Deus num livro sobre o autor a lançar durante o festival ("José Ruy: Riscos do Natural", Âncora Editora, co-autoria de Leonardo de Sá).É certo que a primeira história aos quadradinhos concebida por José Ruy foi publicada no Natal de 1944 em "O Papagaio", tinha ele apenas 14 anos. Mas a formação académica do artista foi obtida na Escola António Arroio, onde foi aluno de Rodrigues Alves e tirou o curso de desenhador litógrafo. A sua estreia absoluta, aliás, ocorreu com apenas nove anos de idade, quando realizou um cabeçalho do suplemento de leitores "A Abelha", da colecção Aventuras.Seria fastidioso enumerar a extensa bibliografia realizada ao longo de décadas. Basta reter que José Ruy é, provavelmente, o artista português com maior número de álbuns produzidos - superior a três dezenas, sem considerar as muitas realizações no domínio da BD publicitária, como sublinham Leonardo de Sá e Dias de Deus no "Dicionário dos Autores" (CNBDI, 1999). Criações suas - histórias de BD, capas, ilustrações de novelas, etc. - podem ser encontradas também nas principais publicações da segunda metade do século XX, de "O Mosquito" às "Selecções BD", passando por "O Gafanhoto", "O Camarada", "Cavaleiro Andante", "Pisca-Pisca", "Mundo de Aventuras", "Jornal da BD", "Tintin", "Spirou", e outros. Algumas delas seriam posteriormente recuperadas em álbuns publicados a partir da década de 80.Uma das características mais interessantes do trabalho de José Ruy reside no facto de ele ser, de uma forma geral, o autor dos seus próprios argumentos, o que é pouco frequente na BD portuguesa e sugere uma assinalável auto-suficiência do artista. Por outro lado, a sua obra é associada de forma inequívoca à exploração e desenvolvimento das temáticas históricas. Esse núcleo central não pára de se ampliar a partir de 1956, data em que começa a ser publicada no "Cavaleiro Andante" (Outubro) a adaptação à banda desenhada de "O Bobo", de Alexandre Herculano. Dias de Deus vê nesse evento um "ponto decisivo de viragem" na trajectória de Ruy: "De agora em diante vai apostar em maior grau na história (vera ou de ficção) e na literatura, sendo progressivamente afastadas as questões aventurescas, policiaizecas, expediçõezecas e outras diversões narcotizantes com que os ingleses nos vinham adormecendo havia meio século."Essa opção de fundo está bem patente em criações como as Aventuras de Porto Bomvento (sete álbuns), a adaptação de "Os Lusíadas" ou de peças de Gil Vicente, onde as exigências ficcionais vão a par de uma preocupação didáctica e pedagógica bem vincada. No entanto, isso não o impediu de manter, paralelamente, uma intensa actividade de divulgação da BD, em especial através de artigos, conferências, cursos e encontros em escolas e bibliotecas.José Ruy é um dos grandes clássicos da banda desenhada portuguesa que está como peixe na água "na composição das vinhetas, no espraiar das paisagens e nos instantâneos da vida animal", como referem os dois autores citados. Em contrapartida, é-lhe apontada uma menor capacidade de reproduzir a anatomia e os movimentos do corpo. Tudo somado, o que se impõe é um "artista experimentado e experiente, óptimo conversador, bom conferencista, excelente memorialista dos quase 60 anos em que entrou no convívio dos nossos melhores argumentistas, desenhadores e editores" (Dias de Deus). Traduzido em números, esse labor contínuo é contabilizado em 3500 esboços e 1400 pranchas de histórias aos quadradinhos que doou aos arquivos do Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem, na Amadora.