Nobel da medicina para livro de instruções das células
Dois investigadores britânicos e um norte-americano foram este ano os laureados com o prémio Nobel da Medicina, por terem escrito alguns capítulos do livro de instruções das células, a base de toda a biologia. Leland Hartwell, do Fred Hutchinson Cancer Research, de Seattle, Estados Unidos, e Timothy Hunt e Paul Nurse, do Imperial Cancer Research Fund, de Inglaterra, foram ontem reconhecidos pelo Instituto Karolinska, entidade responsável por este Nobel, pelo trabalho desenvolvido no estudo das moléculas envolvidas no controlo do ciclo celular. O seu trabalho premiado serviu de base a investigações inovadoras em áreas como a oncologia ou embriologia, e fascina os cientistas da biologia molecular. "É um bom dia para a ciência", diziam ontem alguns investigadores.O total conhecimento do ciclo celular em todos os seus passos é como a busca do Santo Graal para a biologia. Conhecê-lo é como ter acesso a toda a informação que torna a vida possível. O primeiro passo desse ciclo é a divisão celular, o ponto de partida dos organismos vivos - todos os seres humanos adultos são formados por cerca de cem biliões de células que tiveram origem numa única célula primária, ou seja, o ovócito fertilizado.Os laureados com o Prémio Nobel da Medicina deste ano contribuíram com algumas páginas para o manual de instruções sobre esse processo básico que é o ciclo celular. Leland Hartwell, 62 anos, desenvolveu, durante a década de 70, um trabalho pioneiro na identificação de genes envolvidos nos mecanismos de controlo do ciclo celular. Hartwell descobriu que uma certa classe de genes, a que chamou genes "start", estavam envolvidos na primeira etapa do ciclo celular, e que todo o processo estava dependente de um mecanismo de elevado controlo de qualidade, tal como se passa numa cadeia de montagem - cada fase do desenvolvimento passa por um mecanismo a que chamou "checkpoint" e que consiste em não deixar avançar um processo sem que o anterior se complete perfeitamente.Foi com base no trabalho de Hartwell que Paul Nurse, 52 anos, também na década de 70, descobriu um gene envolvido no controlo da divisão das células, o CDC2, nada mais nada menos que um gene do tipo "start" descrito por Hartwell. Nurse percebeu ainda que um tipo de moléculas, ou proteínas, chamadas cinases dependentes das ciclinas, ou CDK, provocavam nessa célula uma transformação química ao nível de outras proteínas, transformação essa que permitia a sucessão das várias etapas da vida da célula.Mais tarde, em meados da década de 80, Tim Hunt, 58 anos, descobriu as ciclinas. Estas proteínas são como relógios que controlam as moléculas CDK e orientam a célula para que esta saiba em que fase se encontra e qual a etapa lógica a seguir. Quando estes mecanismos de controlo falham, a célula desenvolve anomalias que resultam numa divisão descontrolada e em malformações genéticas na sua formação, que dão origem, por exemplo, ao cancro. "A quantidade de proteínas CDK deveria ser constante durante o ciclo da célula, mas varia de acordo com as ordens emitidas pelas ciclinas que actuam mediante as necessidades das células. No fundo, as moléculas CDK podem ser entendidas com um motor e as ciclinas como a caixa de velocidades respectiva", explica o Instituto Karolinska, num comunicado sobre o Nobel da medicina deste ano.A comunidade científica portuguesa recebeu com alguma satisfação a notícia da atribuição deste prémio. "Falava-se há muito tempo que tinha de haver um Nobel para o ciclo celular. É notável o que tudo isto representa na compreensão do processo de progressão das células cancerosas. Há muita gente contente hoje. É um bom dia", disse ao PÚBLICO António Coutinho, presidente do Instituto Gulbenkian de Ciência. "É devido a estes trabalhos que hoje sabemos tanto sobre biologia do desenvolvimento, o que se reflecte no conhecimento que temos sobre o desenvolvimento embrionário", acrescentou o cientista, a título de exemplo.A área da oncologia é uma das que mais lucrou com os estudos que ontem ganharam o prémio Nobel, na medida em que quando se fala de cancro se fala de uma disfunção celular. "Não há dúvida que o conhecimento dos mecanismos moleculares são a nova aposta no tratamento do cancro. E isso passa pela investigação do ciclo celular. Vamos assistir no futuro a uma inovação grande baseada nestes conhecimentos", defende Manuel Abecasis, director do Instituto Português de Oncologia de Lisboa. Resta agora, segundo Abecasis, esperar para que estes conhecimentos acumulados permitam dar um passo em frente no sentido de uma aplicação prática: "Hoje temos um tratamento empírico, com a radioterapia e quimioterapia, que não reconhecem os tecidos e actuam indiscriminadamente. É muito importante chegar ao conhecimento científico para que possamos actuar apenas sobre o que nos interessa destruir. Temos de tratar as causas e não as consequências."Para Jorge Vieira, biólogo molecular, investigador do Instituto de Biologia Molecular e Celular, da Universidade do Porto, a atribuição do prémio era também merecida: "Estes estudos contribuíram para o conhecimento daquilo que todos procuramos conhecer, ou seja, o processo de divisão celular que é o princípio básico da biologia. Quem sabe se um dia não conseguimos introduzir as proteínas em falta nas células que desenvolvem anomalias e controlar doenças como o cancro? Mesmo porque a beleza destes sistemas é que acabam sempre por se provar ser muito simples".