Carlos Zíngaro
"É de uma ironia amarga que homens como Bin Laden tenham adquirido todas as suas capacidades destrutivas através da CIA, que os treinou", lê-se no livro de Carew. O autor sabe do que está a falar, uma vez que ajudou a conceber e criar as unidades de treino em questão. Em "Jihad, a Guerra Secreta no Afeganistão", Tom Carew (um pseudónimo) descreve como os serviços de informações britânicos e americanos treinaram a resistência afegã, como levaram mísseis anti-aéreos aos mujahidin em cima de mulas e como ele próprio teve de, repetidamente, recorrer à sua Kalashnikov para silenciar um demasiado zeloso Spetsnaz (soldado de élite russo). Presentemente, este homem-máquina-de-guerra vive na Bélgica sob um nome falso, onde o nosso repórter o visitou.
É pouco expansivo, provavelmente só com quem não conhece bem. Discreto, quase silencioso no estar. Tem a coluna direita a sustentar um corpo sólido e movimenta-se com passo largo e firme. Atravessa os espaços quase sempre com um meio sorriso hasteado na boca e, se o observarmos com atenção, logo vemos o tal brilhozinho que lhe habita o olhar. É o que deve iluminá-lo pelo lado de dentro quando toca, porque fecha sempre os olhos no palco enquanto actua, enquanto afaga o companheiro de cordas, o seu violino, pedindo-lhe que fale por si. Trabalhámos juntos, em 78, na montagem de uma bela encenação de Ricardo Pais: "Ninguém - Frei Luís de Sousa", no Teatro da Trindade. Ouvira já as suas composições noutras aventuras teatrais, mas foi com "Ninguém" que os sons de Zíngaro me começaram a envolver. A falar-me por ele. A seguir, em 79, num Festival de Jazz em Setúbal, dei-me conta da admiração que por ele sentiam alguns dos notáveis estrangeiros que lá foram tocar e de como o requestavam, porque o queriam a seu lado noutros palcos do mundo. Começou a intrigar-me a resposta que sempre me dava, quando lhe perguntava pela próxima actuação em Portugal - "Cá? Cá não me conhecem!" A ideia de conversar com ele ganhou carácter de urgência por ocasião do último "Jazz em Agosto", organizado pelo Centro de Arte Moderna/Acarte da Fundação Gulbenkian. Li no Programa que a 11 de Agosto actuavam Daunik Lazro (sax alto e barítono), Carlos Zíngaro (violino) e Raymond Boni (guitarra). A notícia referia ainda que o trio era constituído por reputados improvisadores, com uma auspiciosa carreira internacional. Tinha chegado a hora de eu ficar a saber (e dar a saber) outras novas de Carlos Zíngaro.MJS - Zíngaro, diz-me quem és.CZ - Para o meu feitio, essa pergunta é extraordinariamente complicada. Até uma determinada idade julgava que era uma coisa, hoje não sei bem o que sou, quer dizer, hoje sei que sou pai e com muito orgulho, um pai tardio. Tenho algumas dúvidas, existenciais, sobre o que sou em termos artísticos e profissionais. Até aos 20 anos achava que o que era deslumbrante eram estas coisas das artes, das pinturas, das músicas e tudo o que tinha a ver com explorar, experimentar, descobrir. Depois, fiz a tropa e a guerra colonial. Quando voltei, essas coisas deslumbrantes pareceram-me todas uma mentira. Passávamos o tempo a ouvir que era tão bom termos regressado vivos e inteiros e que o que havia a fazer, dali para a frente, era esquecer. O que não foi, nem é possível. Não há um interruptor onde se carrega e desliga, para este tipo de experiências. Então aí entrei num processo diferente, passei a ser de alguma forma uma outra pessoa, a ter de acreditar imenso no que fazia, porque mais ninguém acreditava. MJS - O que fazias já tinha a ver com a música?CZ - Já era a música. Cortei entretanto com aquilo por onde comecei - os clássicos e a carreira mais ou menos delineada, que passava pela Arquitectura, ou seja, por um curso superior. Nem cheguei a fazer o exame de admissão. O que eu queria era Pintura e Escultura, que, na altura, não eram sequer cursos superiores. Mesmo a escolha de Arquitectura não caiu muito bem, não dava muita saída! Na música, então, as coisas eram ainda muito mais difíceis. Nunca fui pessoa de clubes e em Portugal paga-se caro o preço dessa independência. Só que também percebi que, fora de Portugal, podia não me inscrever em nenhum e ser à mesma aceite em determinadas áreas.MJS - Onde é que era exactamente esse "fora de Portugal"? CZ - Começou pela Europa - França, Inglaterra, Alemanha, Áustria.MJS - Chegaste a fazer o Conservatório?CZ - Não completei o curso superior de violino. Estive também dois anos na Escola Superior de Música Sacra, a estudar órgão com Antoine Sibertin-Blanc. Mas o órgão era para mim um instrumento demasiado mecânico, pela coordenação difícil de teclados e pedaleiras. Desisti por isso, apesar de continuar fascinado por aquele som.MJS - Com que idade começaste o teu namoro com o violino?CZ - Com quatro anos e meio. MJS - Há tradição musical na família?CZ - De gosto, sim. A minha mãe chegou a tocar banjo e só por razões económicas não teve continuidade. O meu pai também ainda pegou num violino, mas sem consequências práticas. Um crítico de música amigo do meu pai, Humberto de Ávila, é que achava que a criança que eu era tinha algum jeito e sugeriu que me inscrevessem numa coisa que tinha aberto naquela altura, a Fundação Musical dos Amigos das Crianças. O violino foi um acidente - era o que havia!, porque o que eu queria tocar era tambor e corneta, influenciado pelos desfiles militares, que o meu avô me levava a ver. Sempre tive uma relação de amor-ódio com o violino, de que fiz de resto umas tantas tentativas de desvio e fuga.MJS - Nos teus anos de aprendizagem, incluindo os do Conservatório, como é que foste percebendo que não te encaixavas em nenhum dos ramos genealógicos da família musical portuguesa?CZ - Por um processo complicado de traumas de ensino, de repúdio por formalismos que considerava frustrantes... Depois acabou por ser fácil. Para os da música clássica, na Academia, eu não existia, já que tinha cortado exactamente com todo aquele aprumo e formalismo, que me eram insuportáveis. Os do jazz e os do pop-rock também não me aceitavam bem, por eu ser, para eles, demasiado clássico e "intelectual". Estava situado numa espécie de limbo, terrível de gerir. Houve muito boa (e cotada!) gente a dizer-me - "Desenhas tão bem, tens tanto jeito para a pintura, porque é que não te deixas dessas músicas?" MJS - Levaste o violino para a guerra?CZ - Não. Aproveitei o risco que era levar um instrumento daqueles para África para, de alguma forma, fazer um corte com o passado, com a viciação e com a técnica dos estudos clássicos. E também porque queria tocar outras coisas - guitarra, por exemplo.MJS - Quem eram, nesses tempos, os teus músicos favoritos?CZ - Aquilo que primeiro me despertou para outras realidades foi o jazz - as "big bands", Duke Ellington, Count Basie. Ouvia-os, por volta dos meus 13 anos, em discos de 78 rotações. Os blues fascinavam-me. Era um mundo totalmente diferente daquele em que eu, musicalmente, estava inserido. Depois, aos 14 anos, tive um choque - ver e ouvir Jorge Peixinho a interpretar uma peça para piano preparado de John Cage. "Onde é que está a música?", pensei. Fiquei cheio de curiosidade e de vontade de perceber "aquilo", gostasse ou não. A seguir foi o rock, puro e duro. Do que eu gostava era das vísceras que havia na música dos Yard Birds, dos Rolling Stones. Tive grandes discussões a propósito dos Beatles. Só gostava do que tinham feito quando começaram. Assim que entraram nos álbuns sinfónicos, género "Sargent Pepper's..." e outros, tornaram-se demasiado clássicos - apesar de algumas interessantes experiências essencialmente devidas a George Martin - e deixaram de me interessar. Entretanto, em 1966, tive a oportunidade de uma estadia em Moçambique e na África do Sul e fui apanhado pela onda do "surf". Para quem adora o mar, como eu, fazer "surf" pela primeira vez foi uma experiência fantástica. O que se ouvia naquela altura eram os Beach Boys, que tinham tudo a ver com a época, mesmo fazendo o contrário do que eu já procurava e gostava na música: harmonia total, vozes bem acertadinhas, etc... Lá me conquistaram. Aquela música tinha a ver com as praias de Durban e de Lourenço Marques, com o Índico, com todo aquele "easy going". MJS - Desculpa a impertinência, mas não estou nada a ver-te a fazer "surf"!CZ - Mas fiz, embora o que me interessava mais era a vela. Fui mesmo monitor de vela no Touring Club de França, em 68. Andei muitos anos a dizer que ia vender toda a aparelhagem, tecnologia, computadores, para comprar um barco e desaparecer! E aí sim!, há uma tradição familiar. O meu avô e o meu bisavô eram marinheiros.MJS - Regressemos a John Cage. Foi a digestão do tal choque sentido com o piano preparado por Jorge Peixinho que acabou por te levar aos ramais da música contemporânea?CZ - Foi um longo percurso. Passei dos grupos rock ingleses para os americanos, donde tudo vinha. Teoricamente era lá que estavam as bases e as referências, nos rhythm & blues, nos velhos cantores de blues. Foram eles que me encaminharam até à ponte para o jazz, para a improvisação. As coisas, comigo, foram-se estabelecendo nessa área, já com várias ramificações para a música contemporânea. Comecei entretanto a ler e a perceber melhor o que é que estava por trás dos conceitos de John Cage, que até hoje me fascinam, bem como de outros compositores de música contemporânea. Daí a electro-acústica. Mais tarde, depois da minha estadia em Angola e de Maio de 68, foi crescendo a apetência e a utilização do free jazz que, na Europa, também era utilizado como um grito político, um desejo de outras formas de liberdade. Como em tudo, houve excessos e atitudes mais agressivas, mais radicais. Que me criaram inimizades que sobraram até hoje. Deve também ter a ver com a deliciosa escala deste cantinho onde vivemos...MJS - Referes-te especificamente ao mundo do jazz?CZ - Completamente. Mas também a outros, só que então no mundo do jazz português é uma alegria. De cada vez que, por qualquer acaso ou convite, apareço próximo desse feudo, é a abertura da "época da caça ao Zíngaro"... Curiosamente, sou o único português com entrada no "Dictionnaire du Jazz" de Philippe Carles, A. Clergeat e J.-Louis Comolli (Ed. Robert Laffont 1994)!MJS - Já lá vamos. Mas antes diz-me como é que surgiu esse teu nome de Zíngaro.CZ - É uma alcunha. Anda comigo desde os oito anos. Por causa do violino. Nem sempre estudava as lições como devia e, como tinha bom ouvido, fixava os temas e as peças, o que dava como resultado não acertar em algumas notas durante a aula. Como sabia a melodia de cor tentava acertar com o dedo, com pequenos glissandos. "Isso é tocar à zíngaro", dizia-me, depreciativamente, o professor. Para meu desespero, a alcunha pegou junto dos meus colegas que tinham alguma dificuldade em escolher um entre os muitos do meu nome. Mais tarde, já adolescente, chego um dia a casa e a minha mãe, que estava ao telefone, disse para um amigo meu com quem estava a falar: "O Zíngaro acabou de entrar." Naquele momento desisti de me importar com a alcunha... Mas olha que é um nome que continua a não cair muito bem nalgumas instituições.MJS - Fala-me agora das tuas relações com o jazz, esse campo musical onde sempre imaginei que a liberdade criativa deveria andar acompanhada de uma generosa cumplicidade entre os seus pares. A tua experiência, porém, parece ser outra.CZ - As origens do jazz apontam para o que disseste. Tenho o maior respeito por toda a história do jazz e pelos genuínos músicos de jazz, embora conste o contrário. Foi sempre uma linguagem que me fascinou. Mas nunca me considerei um músico de jazz. Não fiz o percurso, não estudei como hoje se entende que se deve estudar e não o pratiquei com continuidade. Além de que me irritam etiquetas.MJS - Como é que te defines então como músico?CZ - É difícil responder. Sou um violinista e compositor de música contemporânea. Só que se se fala em música contemporânea, em determinados sectores isso é logo entendido como música contemporânea académica - Darmstadt, Stockhausen, Pierre Boulez, etc... Também não é aí que me situo. Tenho tantas influências assumidas, gosto tanto de ouvir, quero tanto ser aberto que, inevitavelmente e apesar de ter como ponto de honra não fazer uma música totalmente idiomática nem de colagens, estará quase tudo mais ou menos assimilado no que faço. Tento sempre ser o mais coerente e consequente que me é possível, mas passei pelo rock, cheguei a tocar fado, música popular portuguesa, céltica, de outras etnias. Apesar da minha formação clássica, é também isto que me interessa preservar.MJS - Alguma preferência no mundo dos clássicos?CZ - Bach, Bartók, Stravinsky, Webern, Alban Berg, Schoenberg, Shostakovich... E, claro, os mais próximos: Messiaen, Nono, Berio, Bussotti, Xenakis, Feldman, Lachemann, para além dos já entretanto referidos, assim como tantos companheiros músicos/compositores com quem tenho tido o privilégio de colaborar. Houve uma altura em que cortei radicalmente com a chamada música erudita. De há 15 anos para cá voltei a ouvir música clássica, de alguma maneira necessitei dessa reaproximação...MJS - Continuas interessado pelo lado experimental da música no que fazes e tocas, ou essa vertente, que sempre te motivou para as tuas pesquisas e criações, tem vindo a ser abandonada?CZ - Continuo muito interessado, embora o experimentalismo nas artes comece a estar fora de moda (que sempre ignorei) e muito mal visto, sobretudo na música. Se sais da gramática do entretenimento, ficas mal visto. Se é verdade que a evolução tecnológica democratizou o acesso às mais variadas formas de criação, sobretudo nas artes performativas, também é verdade que o facilitismo que daí decorreu torna cada vez mais difícil destrinçar o trigo do joio. O genuíno experimentalismo resulta de uma procura de qualquer coisa nova/diferente, qualquer coisa que introduza rupturas no estabelecido e nos faça pensar e questionar. Hoje, parece-me mais assistir a uma sucessão de meras piscadelas de olho a fazer "diferente". Essa é a moda e é perigosamente fácil de executar. É tudo tão rápido que começa a ser complicado perceber as origens. Em termos dos "media", também é visível a facilidade com que se catapulta uma obra e um autor como "nova arte", de um dia para o outro. Li há pouco tempo, num número da "Flash Art", uma crítica curiosa à instalação de um artista na Bienal de Veneza. A instalação consistia na reprodução em tamanho natural das letras HOLLYWOOD, colocadas numa das colinas de Palermo. O que só os habitantes e visitantes de Palermo puderam apreciar, para além de uns "happy few" que lá se deslocaram nos seus aviões privados ou de helicóptero. Este lado descartável de pura glosa ao "entertainment" americano é que me parece exclusivamente anedótico.MJS - É o lado descartável ou a glorificação do efémero que te incomoda?CZ - É, sobretudo, o lado fútil. Não tenho nada contra o efémero. A música é efémera, mesmo se os discos aí estão para a reproduzir. Já te deste conta como se banalizou a música? Está em todo o lado - nos elevadores, nos restaurantes, nos aviões. São formas de futilização tremendas. De tanto a ouvirmos à nossa volta, perdemos a disposição de querer verdadeiramente ir ouvir e ver música. Deslocarmo-nos para ir ouvir música é cada vez mais difícil.MJS - Disso também se queixa o cinema...CZ - É verdade, embora se comece a sentir um tímido regresso às salas. E, evidentemente, estamos a falar de Portugal. Mas também é verdade que a predominância das imagens sobre a música é indescritível. Basta ver as MTV. As músicas e canções, na maior parte dos casos e musicalmente, não têm interesse nenhum, só que os videoclips que as promovem são fabulosos e tu ficas ligada à imagem, que é o que vende.MJS - Os festivais de música, cada vez mais numerosos e concorridos entre nós, mesmo os de jazz, devem não só poder contribuir para a divulgação e para a formação de novos públicos, como revelar uma apetência musical grande de quem os frequenta. Dá ideia que as pessoas, ao contrário do que afirmaste, se deslocam mesmo "para ir à música".CZ - Qual música? Cada vez há mais festivais de música, até de jazz, é verdade, mas é aí que eu coloco as minhas dúvidas, porque infelizmente o jazz tornou-se, para determinadas pessoas, para determinados praticantes, uma música de repertório. Classicizou-se ou tornou-se entretenimento para alguns que se pretendem "modernos". Ainda há lugar para algum improviso, algum pouco risco dentro de certos parâmetros, mas a postura, a maneira de entender, de organizar, de apreciar, de divulgar, foi-se encaixando numa forma que dilui toda a força de ruptura que faz parte da origem do jazz.MJS - Às rupturas seguiram-se sempre períodos de absorção, que prepararam novas rupturas... Em todos os campos da criação humana, e não só na música, foi o que aconteceu. Fala-me agora da tua escrita musical para espectáculos de teatro.CZ - Começou logo em 74, com o primeiro espectáculo de Os Cómicos - "As Cuecas" de Karl Sternheim, encenado por Ricardo Pais e com estreia no Instituto Alemão.MJS - Seguias já a influência de Bussotti?CZ - Não directamente. Aquilo a que se chama teatro-música, cada vez mais em desuso, é uma área da música contemporânea (de que Mauricio Kagel ou John Cage terão sido os compositores mais conhecidos) em que se integram elementos de alguma forma teatrais, eventualmente texto, mas inseridos na música/som e na sua directa execução. Não é a música que ilustra ou que acompanha a acção teatral. Kagel, por exemplo, podia tocar um cordofone, que tinha já um elemento teatral físico, e a própria execução, ou a maneira como integrava o som na acção da peça, continha em si também um elemento teatral. Enquanto a música para teatro ou o teatro musical são coisas distintas. A minha "luta", ao compor para teatro, tem sido tentar, dentro do possível e dependendo sempre do projecto do encenador, fazer eu uma encenação própria. Não se trata de autonomia, porque se está integrado no todo da peça, mas não é uma ilustração. O melhor exemplo, aquele em que me pude empenhar de uma maneira total, porque havia meios e uma grande sintonia com o encenador, foi em "A Noite" de Giorgio Barberio Corsetti, no Acarte em 1998. Vinte anos antes, com o "Ninguém" de Ricardo Pais, tivera a oportunidade de começar a pôr em prática alguns conceitos que, descobri anos depois, faziam parte do postulado pós-moderno: a mistura de elementos e épocas, de referências e sonoridades = quarteto de sopros, com violino e guitarra portuguesa preparados e traficados electronicamente, com sintetizador analógico e sequenciador em tempo real...MJS - Gostas de ópera?CZ - Sempre tive muitos problemas com a ópera. Gosto muito de alguns temas, de algumas árias, de algumas composições. Mas o "objecto" ópera sempre me agastou. Talvez seja uma atitude política e cultural. Sendo a ópera um espectáculo total, fabuloso, tudo aquilo que lhe está ligado e que o envolve deixa-me de fora. A atitude social do "vamos à ópera" irrita-me. E aí está um campo da música onde pouquíssimas rupturas aconteceram. As tentativas pontuais de um Bob Wilson, de um Philip Glass acabaram sempre por se inserir e por ser integradas numa macroestrutura muito pesada, sendo embora deslumbrantes para uma grande camada.MJS - Tens gravado muito fora de Portugal?CZ - Tenho umas três dezenas de discos editados, que evidentemente não têm só o meu nome, até porque isto das "novas músicas" ou das "músicas improvisadas" são conceitos muito democráticos e, na sua esmagadora maioria, são editados lá fora. Só três ou quatro é que foram feitos em Portugal. Tem tudo também a ver com aquilo que já referimos antes sobre a minha actividade no exterior e cá dentro.MJS - Explica-me melhor.CZ - A noção de "obra" nunca me preocupou, embora seja compositor e goste muito de fazer a "minha" música. Mas o que eu gosto mais é de ser instrumentista, músico. Em anos melhores, como este de 2001, faço uma meia dúzia de concertos em Portugal, enquanto em média tenho dois, três, quatro concertos por mês no estrangeiro. Passam o tempo a referir-me "os santos da casa...", mas eu acho que tem a ver com uma forma de entendimento da contemporaneidade e da sua pertinência por parte dos nossos "media" e das nossas instituições. É desesperante o querer ser-se "jovem", "in", "branché" e outras coisas... É fundamental ser-se "famoso" sem ter qualquer importância o que se faz para o ser. Dantes era-se eventualmente famoso por anos de trabalho e dedicação. Hoje é-se famoso porque se é "famoso", porque se aparece na TV ou em revistas de "modas e bordados"... Quem se fecha numa casa de banho a gritar que se vai matar ou descobre uma nádega em horário nobre é mais "famoso" do que um cientista que dedicou décadas da sua vida à investigação! Quando a Rádio Nacional de Espanha, a RAI, a CBC (Rádio Canadá) ou a WDR se deslocam propositadamente para gravarem um concerto meu, é curioso constatar que nenhuma rádio ou televisão nacionais alguma vez o fizeram...MJS - Qual é a instituição portuguesa que mais tem reconhecido o teu trabalho e te convida? A Gulbenkian?CZ - De forma alguma, não sei se é pelo nome-alcunha que tenho, mas dá-me ideia que nunca existi para o serviço de música da Gulbenkian. Fiz, já lá vão uns anos, uma composição para o Ballet Gulbenkian, para uma coreografia de Vasco Wallenkamp e soube que houve alguns problemas internos. Perguntava-se: "Porquê escolher um músico menor?" O concerto deste ano para o "Jazz em Agosto" foi um acidente. Não estava previsto na programação inicial. Foi um extra. Devo o convite ao director do Acarte, Mário Carneiro, mas talvez não o devesse ter aceite, justamente por esse lado acidental.MJS - Falei-te na Gulbenkian porque os Encontros de Música Contemporânea são uma iniciativa fantástica e parecer-me-ia normal teres tido alguma vez uma ou outra participação.CZ - Nunca falhei um nos primeiros anos, mas nunca fui convidado a participar. Não faço parte de nenhuma academia, de nenhum clube, para que o Serviço de Música me reconheça. Graças à saudosa drª Madalena Perdigão, lembro-me de um ano, não sei se foram os primeiros se os segundos Encontros, em que até abriram o restaurante da sede e fizeram concertos non-stop, com conferências, apresentações de electro-acústica... foi fantástico! Para mim então, recém-chegado das gloriosas campanhas de África, aquilo era o El Dorado. A Gulbenkian foi, antes do Acarte e depois com o Acarte, um magnífico pólo de descobertas. Precioso para a minha geração. Com a criação do Acarte e do Centro de Arte Moderna pela drª Madalena Perdigão, passei a ser pontualmente contactado por ela, participei em algumas iniciativas e fui convidado por alguns coreógrafos e encenadores. Mas, repito, só no Acarte.MJS - Gosto que tenhas referido a drª Madalena Perdigão, senhora por quem tive sempre uma grande admiração e que deixou um terrível vazio atrás de si. Tão grande quanto grande foi a obra que criou. Fala-me dela e dos contactos que com ela tiveste.CZ - A drª Madalena Perdigão faz parte de um grupo de pessoas, raras e muitas já infelizmente desaparecidas, que eu diria terem um espírito humanista, renascentista. Pessoas que tinham a possibilidade e o gosto de organizar e colaborar com as artes. Ela não tinha problemas em assumir que não gostava, ou não percebia, ou não gostava nem percebia, mas sabia que aquela determinada obra era importante, era importante ser apresentada e as pessoas que a faziam ou que a tinham criado eram dignas de respeito. No final da sua vida, já em situações bastante dolorosas, nunca deixou de ir cumprimentar os artistas no final de um espectáculo, de falar com eles, de lhes pedir esclarecimentos sobre uma ou outra coisa. O dramático é que pessoas como ela e mesmo o marido não deixaram continuadores.MJS - Quando és convidado para tocar fora, vais como solista?CZ - Nem sempre. Posso ser contratado como solista, como proponente de um grupo, ou como integrando um grupo. Em Spoleto, onde estive recentemente, toquei como solista, como Steve Lacey e Evan Parker.MJS - O que é que tocaste em Spoleto?CZ - A minha música. Um solo de várias peças para violino e electro-acústica.MJS - Para além do violino, que aparelhagem viaja contigo?CZ - Um computador Macintosh Power Book, com software específico que interage com o instrumento.MJS - Tocas com partitura?CZ - Levo para os concertos uma sequência de sinais que me permito, e obrigo, a alterações momentâneas eventuais, de acordo com elementos vários. Embora não acredite no improviso total, passa sempre alguma coisa pela improvisação - ou, como alguns chamam, "composição imediata". Há uma base, haverá estruturas, referências. Quando se trata de uma encomenda, para outros interpretarem, aí sou obrigado a escrever. Quando se tem a possibilidade de trabalhar com músicos / compositores como Joêlle Léandre, Richard Teitelbaum e tantos outros magníficos improvisadores com quem se encontram momentos de rara magia e de soberba composição, sentem-se enormes limitações na não espontaneidade da escrita! MJS - Há compositores portugueses contemporâneos que admiras?CZ - Jorge Peixinho, Emmanuel Nunes e a saudosa Constança Capdeville, com quem tive o privilégio de colaborar.MJS - Tens um agente?CZ - Tenho dois agentes, um em França, outro na Suíça, para coisas pontuais. Mas a maior parte dos contactos é pessoal.MJS - Estás atento aos sons que te rodeiam?CZ - Muito. Ainda ontem, era tarde, a noite estava quente e a cidade parecia parada. Da varanda lá de casa vê-se a Ponte 25 de Abril e ouvia-se de uma forma muito interessante o som dos carros a passarem na grelha do tabuleiro. Era fantástico. MJS - E o silêncio?CZ - O silêncio não existe. É eventualmente uma câmara anecóica e mesmo assim ouves os teus próprios sons. MJS - Dá-me uma palavra de eleição.CZ - Curiosidade.