Jihad versus Cruzada
A utilização do termo "cruzada" pelo presidente dos Estados Unidos, George w. Bush, para designar o enorme esforço conjunto contra o terrorismo foi infeliz, mas desculpável. Para o mundo ocidental, esta palavra há muito que perdeu o seu significado original de uma "guerra pela religião", e muitos nem saberão que este é verdadeiro sentido do termo. Actualmente, em quase todas as situações, "cruzada" significa apenas uma vigorosa campanha por uma boa causa. Esta causa pode ser política ou militar, embora raramente o seja; normalmente, é social, moral ou ambiental. Na utilização ocidental moderna raramente, ou nunca, tem um significado religioso.No entanto, o termo "cruzada" ainda toca num ponto nevrálgico do Médio Oriente, onde as Cruzadas são vistas e apresentadas como as precursoras medievais do imperialismo europeu - agressivo, expansionista e predatório. Não pretendo defender ou desculpar os comportamentos não raras vezes atrozes dos cruzados, tanto nos seus países de origem como nos territórios que invadiram, mas o analogia imperialista pode induzir em erro. As Cruzadas poderiam ser melhor descritas como uma resposta limitada, fora de tempo e, em última análise, ineficaz à "jihad" - uma tentativa falhada de recuperar através de uma guerra santa cristã ou que tinha sido perdido por uma guerra santa muçulmana.Na altura das Cruzadas, quando a Terra Santa e algumas zonas vizinhas da Síria foram conquistadas e, durante algum tempo, governadas pelos invasores da Europa, não parece ter havido entre os muçulmanos uma real percepção da natureza do movimento que levou os europeus até à região. Os cruzados estabeleceram principados no Levante que rapidamente se adequaram aos modelos políticos regionais. Mesmo a conquista de Jerusalém não despertou grandes atenções na altura e os apelos de ajuda a várias capitais muçulmanas ficaram sem resposta.A verdadeira contracruzada iniciou-se quando os cruzados - muito estupidamente - começaram a destruir e atacar as terras sagradas dos muçulmanos, nomeadamente Hijaz, na Arábia, onde se situavam as cidades santas de Meca e Medina - onde Maomé nasceu, levou a cabo a sua missão e morreu. Na vasta bibliografia árabe sobre o período das Cruzadas, é muitas vezes referida a presença destes invasores, que são sempre chamados de "francos" ou "infiéis". Os termos "Cruzadas" ou "cruzado" pura e simplesmente não existem.Eles começaram a surgir de forma cada vez mais frequente a partir do século XIX, entre os escritores árabes modernos, à medida que estes foram tomando conhecimento da bibliografia ocidental, escrita em línguas ocidentais. Agora, o seu uso é recorrente. É sintomático que Osama bin Laden, na sua declaração de "jihad" contra os Estados Unidos, se refira aos Americanos como os "cruzados" e considere a sua presença na Arábia como a primeira e fundamental ofensa. A segunda afronta dos norte-americanos é a utilização da Arábia como base para um ataque ao Iraque. O problema de Jerusalém e o apoio ao "insignificante estado dos Judeus" aparece em terceiro lugar.O significado literal da palavra árabe "jihad" é esforçar-se, e seu uso mais comum vem da frase do Corão "esforçar-se no caminho de Deus". Alguns muçulmanos, sobretudo nos tempos modernos, interpretaram o dever de "jihad", no sentido moral e espiritual. A interpretação mais comum, e aquela que é mais vulgar entre os teólogos clássicos e analistas, apresenta a "jihad" como a luta armada do Islão contra infiéis e renegados. Ao contrário do termo "cruzada", a "jihad" manteve na actualidade a sua conotação religiosa e militar.Sendo uma obrigação religiosa, a "jihad" está bem regulamentada na "sharia" - lei corânica -, que descreve com detalhe questões como o lançamento, condução, interrupção e cessação das hostilidades, o tratamento de prisioneiros e civis, a utilização de armas, etc. Numa guerra ofensiva, a "jihad" é uma obrigação colectiva de toda a comunidade e pode por isso ser levada a cabo por voluntários ou profissionais. Numa guerra defensiva, é uma obrigação individual de cada muçulmano.Na sua declaração de 1998, Osama bin Laden invoca esta regra: "Há mais de sete anos que os Estados Unidos ocupam as terras do Islão no mais sagrado dos seus territórios, a Arábia, pilhando as suas riquezas, sobrepondo-se aos seus governantes, humilhando o povo, ameaçando os seus vizinhos, e usando as suas bases na península como ponto de partida para a luta contra os povos islâmicos vizinhos". Sendo assim, "matar Americanos e os seus aliados, tanto civis como militares, é um dever individual de cada muçulmano, em qualquer país onde isso seja possível, até que a mesquita de Aqsa e a mesquita de Haram sejam libertadas, e até que os seus exércitos, desfeitos e enfraquecidos, partam de todas as terras do Islão, incapazes de ameaçar qualquer muçulmano".Foi o próprio Maomé que conduziu a primeira "jihad", na guerra dos muçulmanos contra os pagãos da Arábia. A "jihad" foi prosseguida com os seus sucessores, numa série de batalhas que levaram ao domínio árabe-muçulmano sobre a região do Médio Oriente, incluindo a Terra Santa, e depois sobre o este asiático, África Oriental e, por três vezes, sobre a Europa - os mouros em Espanha, os tártaros na Rússia e os turcos nos Balcãs. A Cruzada fez parte do contra-ataque europeu. A reconquista cristã foi bem sucedida em Espanha, na Rússia e, parcialmente, nos Balcãs; falhou na recuperação da Terra Santa para o mundo cristão.Para os islamistas, o termo mártir é normalmente utilizado para designar a morte de alguém na "jihad", e a recompensa é a graça eterna, descrita com algum detalhe nos primeiros textos religiosos. O suicídio é outra questão.O Islão clássico, em todas as suas formas e versões, nunca permitiu o suicídio. É considerado um pecado mortal, punido com um castigo eterno que consiste na repetição infinita do acto pelo qual o suicida se matou. Os teólogos clássicos, na discussão das leis da guerra, faziam uma distinção clara entre o soldado que enfrenta a morte às mãos do inimigo e aquele que se mata com as próprias mãos. Os primeiros vão para o céu, os segundos vão para o inferno. Mais recentemente, alguns teólogos eliminaram a distinção e prometeram os prazeres do paraíso aos homens-bomba. Outros mantém-se fiéis ao ponto de vista tradicional que proíbe o suicídio, sob qualquer forma.As leis da "jihad" também proíbem categoricamente as violações e matanças indiscriminadas. Os guerreiros que travam a guerra santa são instados a não ferir os civis, as mulheres e as crianças, "a não ser que estes ataquem primeiro". Mesmo o problema dos mísseis e da guerra química é referido nas leis: no primeiro caso quando se fala da resposta às catapultas, no segundo quando se refere a utilização de setas envenenadas e contaminação das reservas de água dos inimigos. Mas aqui, os teólogos divergem - uns permitem, outros condicionam, outros proíbem estas formas de guerra. Um ponto em que todos estão de acordo é na necessidade de haver uma clara declaração de guerra antes do início das hostilidades e um claro anúncio do fim do conflito depois de feitas as tréguas.O que os teólogos clássicos do Islão nunca sequer remotamente ponderaram foi um tipo de chacina, gratuita e não anunciada, de populações civis inocentes, como aquela a que assistimos em Nova Iorque há duas semanas. Para isto não há precedentes nem regras no Islão. De facto, é difícil encontrar precedentes mesmo nos ricos anais da malvadez humana.Exclusivo PÚBLICO/The Wall Street Journal Europe