O maniqueísmo
Mani era o homem que vinha do país de Babel para fazer ecoar um grito através do mundo. Pela sua vida e pelos mil anos que se seguiram a sua palavra ecoou pelo mundo. No Egipto chamavam-lhe o "Apóstolo de Jesus" e na China o "Buda da Luz". Todavia, como nos conta Amin Malouf no seu admirável "Jardins de Luz", Difel, dos livros de Mani, da sua mensagem de harmonia entre os homens, a natureza e a divindade já nada resta. Das suas ideias só guardamos as palavras redutoras - maniqueu e maniqueísmo - transformadas em insultos nas nossas bocas e nas de todos os inquisidores de Roma e da Pérsia que pelos milénios o amaldiçoaram, criando essa insuportável coisa chamada "maniqueísmo".Nos Jardins da Luz do nosso tempo já a claridade não se separa das trevas. Depois do "big bang" que se deu na fronteira dos dois mundos, como explicava Mani, as partículas da luz misturaram-se então com as trevas de mil modos diferentes e foi assim que surgiram as criaturas, os corpos celestes, as águas, a natureza e o homem. Este é o maniqueísmo originário, uma filosofia de vida orientada pela paz. Nos tempos que vivemos, porém, o maniqueísmo imposto pela velha razão de Estado dos poderes modernos, sucessores daqueles que quiseram apagar a doutrina de Mani e perseguir os seus seguidores, é a ditadura dos que tentam decretar os ângulos de análise sobre quase tudo na vida. Face aos atentados contra o World Trade Center (WTC) ou se é de esquerda ou de direita, ou se é a favor da globalização ou contra ela, ou se é pelos EUA ou antiamericano. Enfim, alguns dos espíritos mais brilhantes do país, de esquerda e de direita, teimam em seguir na linha desse maniqueísmo cego, quando analisam o que se vai dizendo e escrevendo sobre os atentados ao WTC. Diabolizar os argumentos dos que são contra uma nova guerra transformando-os numa horrível conivência com os assassinos do WTC passou a ser um objectivo dos que apontam a inexistência de caminhos alternativos a uma retaliação militar. Essa é, para além de uma estratégia suicida, uma postura desonesta no plano intelectual. Eu condeno os atentados, sou contra o terrorismo, nunca tive desconfortáveis companheiros de jornada - nem na solidariedade com o terrorismo, nem no aplauso às guerras sujas que atravessam os 50 anos da história da CIA e muitos teimam agora em silenciar -, mas sou contra um tempo em que o primado da guerra prevaleça sobre a política e penso que, por todos os meios, tem de subsistir aqui a dimensão punitiva da justiça.Nunca tive indignações selectivas e choca-me tão profundamente ver alegria na Palestina, quando dezenas de jovens israelistas morrem numa discoteca, como a crueldade e a violência dos falcões israelitas que todos os dias impõem a guerra sobre a diplomacia. Isto faz de mim um mau esquerdista?Não me reconheço na actuação violenta dos movimentos antiglobalização, mas acho que tem de ser encontrada uma alternativa à globalização política, económica e social bastante diferente daquela a que temos assistido, muito subordinada aos interesses sem fronteira e sem alma do poder do dinheiro. Isto faz de mim um perigoso terrorista? Por favor...A verdade é que a complexidade do mundo de hoje não se reduz às certezas inabaláveis de meia dúzia de personagens que se movimentam nos corredores de uma elite do pensamento, em regra ao serviço de um poder político e económico inculto e necessitado do verniz que os arautos do pensamento político e das ciências humanas sempre dão.Não entro, pois, na simplificação excessiva da reacção a um acontecimento cujo entendimento está para lá das actuais categorias de análise da realidade. É evidente que face à morte de milhares de inocentes não se pode cair na inacção ou tão-só na vacuidade de uma condenação autocomprazedora para a boa consciência. Não se pode apenas, num momento destes, com mais de seis mil mortos nas mãos, ir só à procura das causas do terrorismo ou refugiarmo-nos apenas na cómoda explicação histórica dos abismos que pró-americanos e antiamericanos foram cavando no mundo. A vida de milhões de pessoas por esse planeta fora dispensa seguramente esse historicismo e quer apenas respostas objectivas contra o medo.O que de significativamente novo estes atentados trazem para o mundo está no desafio que em si comportam de superação ou não desta nova era pelos caminhos de um impulso civilizacional. Ou somos capazes de lhes sobreviver preservando o planeta como um lugar decente para viver ou não. E isso significa que o terrorismo tem de ser combatido pelos Estados numa lógica de justiça e não de vingança. Por uma lógica de política e não de guerra. Responsabilizando os políticos e não entregando o "caso" apenas aos militares.Como bem notou o procurador-geral da República, Souto Moura, num artigo escrito há uma semana no PÚBLICO, o que vai ficar de mais perene para as sociedades livres e democráticas será a forma como vamos sair desta conjuntura terrível em que se coloca objectivamente a questão da fronteira entre o campo de actuação do direito enquanto instrumento de repressão do crime e a sua ultrapassagem pelas respostas retaliatórias que se socorrem da guerra enquanto mecanismo de aplicação de uma justiça.É verdade que está posta em causa aquilo que Souto Moura chamou "resposta repressiva clássica" (investigação-acusação-julgamento-punição). Uma recusa reiterada por parte do regime taliban em entregar Bin Laden para que seja julgado pelo direito, internacional ou norte-americano, parece-me que apenas reforçará a necessidade de aplicar outros meios pouco compatíveis com o direito penal, mesmo o de ressonância ética. Meios que, aliás, foram aplicados noutras circunstâncias, como na entrega do terrorista Carlos "O Chacal" pelo Sudão às autoridades francesas - ou seja, nestes casos não funciona o regime clássico da extradição e é necessário algo mais. É precisamente esta espécie de niilismo penal que o caso do WTC vem colocar e compete-nos saber sair dele com inteligência.As autoridades norte-americanas, que têm sido mais prudentes que muitos dos comentadores lusitanos inebriados com o cheiro a pólvora, começaram a reagir nos termos clássicos ao abrir uma investigação, mas vão ter de tomar uma opção quer as provas apontem para Bin Laden ou para qualquer outro suspeito que se esconda atrás de um governo islâmico. É aí que entra provavelmente a força ou a persuasão dos que protegem o culpado pelo desenvolvimento de um cerco internacional, também com forças militares. Resta saber como, com que apoios, com que envolvimento do mundo árabe e muçulmano, com que bom senso. Para mim, há uma coisa que é certa: combater o terrorismo islâmico da mesma forma que o Estado espanhol combateu a ETA ao criar os GAL, um grupo de mercenários contratado para matar etarras, não leva a lado nenhum. A ETA acabou? Ficou enfraquecida?