À Maneira dos Geómetras

O grande silêncio dos espaços infinitos, que tanto pavor provocou a Pascal e a Leopardi, constitui o tema do segundo livro de poemas de Eugénio Lisboa. Sob o título "O Ilimitável Oceano".

Eugénio Lisboa é um ensaísta conhecido principalmente pelos seus trabalhos sobre José Régio - de que é o mais dedicado conhecedor- e por praticar a crónica como autêntico crítico da cultura, tendo publicado apenas, além do presente pequeno volume, um outro livro de poemas, "A Matéria Imensa". A poesia de Eugénio Lisboa, seu violino de Ingres, surpreende-nos, desde logo, pelo seu assumido anacronismo. O mesmo se poderia dizer, de resto, da poesia de Jorge Luís Borges depois de ter abandono os fervores "ultraístas" da juventude e de ser constrangido, pelo avançar da cegueira, a construir oralmente os seus textos, sendo forçado a apoiar-se no metro e na rima como auxiliares da memória, reatando, assim, por sobre o fragor da modernidade, com toda uma tradição que remonta a Homero. Também em Eugénio Lisboa - e é esta dimensão que o aproxima de Borges, já que a aposta formal acaba por ter um valor acessório - o destino humano não passa de palavra vã no tempo que só no poema logra uma pátria precária, o resgate provisório do olvido.Ao contrário da recuperação de formas estéticas ou reposição de estilos (o neoclassicismo) que se traduz por um salto no tempo, o transporte, ou o transplante, de uma época para outra de todo um conjunto de características estilísticas que identificam um certo período histórico, revelar-se-ia, antes, na tentativa (porventura nunca inteiramente consumada) de uma espécie de salto para fora do tempo cronológico. O anacronismo em poesia, ou seja, uma prática de escrita fora do nosso horizonte de expectativas por muito problemático que se torne defini-lo num tempo em que predomina o ecletismo, é sempre o sintoma de um certo mal-estar perante a pressão, por vezes histérica, da contemporaneidade. Aparece como o antídoto indicado contra os vícios estilísticos mais ruidosos que escondem o contributo do tempo para a poesia do futuro, procurando, numa espécie de legítima defesa, envolver a produção poética num halo de intemporalidade.É, assim, uma ambição de austeridade estética (e ética) que persegue a obra poética de Eugénio Lisboa. Embora se verifique o recurso a formas imediatamente reconhecíveis - o soneto quinhentista, a cantiga dos cancioneiros, sobretudo nas homenagens a poetas constantes do primeiro livro, o que, necessariamente, denuncia marcas dos períodos poéticos revisitados -, esta poesia caracteriza-se sobretudo pela recusa em se tornar num florilégio de figuras de retórica, em que por vezes se transforma alguma poesia recente que entra em diálogo com os grandes momentos do passado, antes apontando sempre, tendência acentuada no segundo livro, para um ideal de decantação, purificação, do poético, desprovido de resíduos estilísticos."A Matéria Intensa", livro publicado em 1985, desenvolve um velho tópico dos humanistas, abundantemente tratado por autores como Cícero, Petrarca, Bocácio, Maquiavel, Montaigne: o convívio intelectual com os grandes escritores do passado, os mortos, intensos, depurados, em concentração de virtudes, com quem é possível dialogar e que constituem parte integrante da nossa humanidade, do nosso presente. Um certo estoicismo, à Marco Aurélio, sempre presente no fraseado curto e grave, a que a métrica não corta o livre respirar, torna este livro uma aprendizagem da morte através de todo um programa de vida que passa pelo fortalecimento da alma contra os golpes da fortuna. A razão consiste em aderir às inclinações da natureza, entrar inteiro no curso do tempo. Tal como propunha a filosofia do estóico Epicteto, também a poesia pode contribuir, é esta a lição do livro, para que o homem seja digno dos acontecimentos.Poesia da morte e da elipse, se em termos de uma visão estóica do mundo "A Matéria Intensa poderia ser considerado a ética, "O Ilimitável Oceano" é, seguramente, a física, a descoberta das leis do universo em que se inscreve uma moral. Neste livro, deliberadamente em registo menor, o belo não atinge, normalmente, a espessura da maior parte das páginas do livro anterior, em que "o abismo e a sedução", como se diz num poema sobre Veneza, são quase uma norma. Os heróis da cultura são agora os astrónomos (de Tales de Mileto a Oppenheimer), argonautas de uma ciência que sonda o infinito dos mundos a haver para nos transmitirem a mensagem, em contornos algo pessoanos, do frio por vir. Aos astrónomos Eugénio Lisboa acrescenta outros geómetras das leis do universo: Empédocles, Bartolomeu Dias, Van Gogh. O grande silêncio dos espaços infinitos, que tanto pavor provocou em Pascal, ou em Leopardi, é acolhido nestas páginas com uma serenidade intelectual temperada na filosofia dos estóicos.A construção límpida e despojada desta escrita parece inspirar-se no modelo geométrico de Euclides, que já foi considerado o Evangelho da Razão e que forneceu a estrutura para a maquinaria conceptual da Ética de Espinosa, modelo em que, numa escala diferente, Eugénio Lisboa procura encontrar uma gramática elementar da criação poética. Se Espinosa se propõe falar de Deus como quem fala de círculos e de triângulos e das paixões humanas como de linhas, de planos, ou de corpos , do mesmo modo Eugénio Lisboa, "more geometrico", à maneira dos geómetras, traça o movimento de rotação (o mapeamento de suas rotas e derrotas) do destino humano. Traça uma tangente à circunferência do frio."Algumas Conclusões" constitui um dos bons momentos do livro, fazendo esperar que o autor explore esta linha (o poeta é um fazedor de frases, como lembra Manoel de Barros), em lugar da insistência no espartilho métrico e na rima, o que, por vezes, fere de algum artificialismo o livre discorrer de assombro em assombro.

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