A celebração da bandeira no estádio Yankee
Vieram todos: judeus, protestantes, católicos romanos, muçulmanos, hindus, arménios, ortodoxos gregos. Vieram para implorar a bênção do deus de cada tribo, vieram para oferecer conforto e pregar esperança ao povo de Nova Iorque, vieram rezar pela América de luto.
O sopro das escrituras anima-lhes a oração e os cânticos.
A voz magnífica de Placido Domingo enchendo o estádio com a “Ave-Maria” cristã de Shubert cruza-se sob o céu de nuvens brancas na tarde serena com o canto plangente do sacerdote do templo “sikh” de Richmond Hills. Com o grito tremendo do muçulmano Abdul Wali Shaheed a Alá todo-poderoso. Com os sons crus que o rabi Heskel Lookstein arranca de um chifre de carneiro. Com a lição do rabi Marc Gellman — “Naquele dia não morreram seis mil pessoas; naquele dia uma pessoa morreu seis mil vezes. Quando alguém mata alguém é como se matasse toda a gente; quando alguém salva alguém é como se salvasse toda a humanidade.”
Mas não há apenas a promessa de consolo nem a certeza da alegria breve nas palavras do rabino judeu, do imã islâmico, do pastor luterano, do pandita hindu, do bispo católico.
Nestas leituras dos livros da sabedoria, nesta antologia dos mais inspirados sermões da fé ecuménica, nestes cânticos que mais parecem a banda sonora para o filme do patriotismo “made in America”, está lá, rotunda, clara, ribombante, a celebração da bandeira, “muito mais do que um símbolo, um testemunho vivo do espírito americano” (comandante-chefe da esquadra do Atlântico, almirante Robert Natter).
Ninguém lhe escapa. Todos a exibem, orgulhosos. A multidão, que a traz no carro, nos sacos, no cabelo, no boné e agora a agita, ao som do hino “We Shall Overcome” cantado pelo coro dos rapazes e raparigas de Harlem e ecoado por milhares de vozes, mãos nas mãos ao alto; os oficiantes, que a prendem bem visível nas vestes; Clinton que a põe e tira do bolso esquerdo do casaco.
O governo do estado e a câmara de Nova Iorque convidaram os familiares das vítimas do World Trade Center para uma celebração colectiva da dor no estádio Yankee, em Keyspan Park, Brooklyn. O levantamento dos bilhetes apenas em esquadras de polícia, as fortes medidas de segurança, o medo de sair à rua que paralisa ainda muitos nova-iorquinos, algum cansaço, eventualmente, deixam os 60 mil lugares do estádio a menos de dois terços. As televisões, porém, haverão de dar à iniciativa grandeza nacional em retransmissões repetidas pelo dia e madrugada fora.
A cerimónia combina a solenidade das orações ecuménicas — rezadas em inglês, espanhol, hebreu, árabe, hindi — com os elementos de sedução que a sociedade do espectáculo aperfeiçoou nos EUA como em mais lado nenhum: actores e vedetas da televisão como James Earl Jones e Oprah Winfrey, apresentadores da cerimónia; cantores como Bette Miller (“Winds Beneath My Wings”), Lee Greenwood (“God Bless America”) e Marc Anthony (“América the Beatiful”); políticos como o antigo Presidente Clinton (ovações sempre que o seu nome é pronunciado, gritos de saudação de todas as bancadas da assistência), sua mulher Hillary, o supermediático presidente da câmara, Rudolph Giuliani; e os novos “heróis da América”, bombeiros e polícias, na primeira fila ao lado de cardeais, imãs, e pregadores.
Três horas de catarse deixam escrito para a memória colectiva um poema de amor à bandeira, de amor ao Estados Unidos, de amor a Nova Iorque, acerca de cujo futuro o bem amado Giuliani diz que não será nunca mais o mesmo porque “será melhor”.
A multidão reza, canta, chora, exibe as fotos dos desaparecidos. Irrompe em aplausos ao ouvir o reverendo Calvin Butts, num tom que evoca a oratória arrebatadora de Martin Luther King: “Alguém levantou um muro para dividir o Leste e o Oeste, o muro caiu e nós vencemos; morremos nos desertos da Arábia, morremos em Tripoli, irmãos e irmãs nossas morreram no World Trade Center, mas nós vamos vencer porque não temos medo”. Estremece de orgulho patriótico quando o imã Pasha proclama “Nós somos muçulmanos, mas somos também americanos.” Amaina os demónios da vingança cega quando o pandita Sukhram do templo hindu de Sreeraam grita “América mantém-te unida porque só a unidade faz a força”.
Na hora do regresso a casa, o governo da cidade põe o metro à disposição de toda a gente. Como antes distribuíra rosas, ursos de peluche, bandeira, pacotes de lenços “kleenex”. Num dos muros do estádio, familiares das vítimas colam cartazes com a fotografia do desaparecido nos intervalos deixados por desenhos da bandeira feitos por crianças: Edna, Betsedy, Godwin Ford.
Passaram já 12 dias sobre os atentados, mas a mãe de Godwin continua a contar nas paredes, nas árvores, nos muros dos jardins que o filho tinha um defeito na mão e levava um cordão de ouro ao peito quando deixou de ser visto no 9º andar da Torre 2. E a pedir que quem dele tiver notícia telefone para o 718-221-4222.
Alex, 27, acompanhou a mãe no interior do estádio. “Gostei da cerimónia. Com ela quisemos exprimir tristeza, mas também esperança.” Olha no vazio quando o PÚBLICO lhe pergunta como é possível ela e os familiares dos outros 6400 desaparecidos esperarem ainda o impossível milagre. “Esperança, ou o princípio da resignação”, diz baixando a voz, enquanto a mãe cola mais um selo com a bandeira nacional entre a parede e a fotocópia a cores com a fotografia e as características físicas de Godwin.