O mundo sem ordem

O dia 11 de Setembro foi considerado por muitos analistas e responsáveis políticos como o dia que mudou o mundo - data mais marcante ainda que a da queda do muro de Berlim, que fez ruir a divisão do mundo em dois blocos. O 11 de Setembro de 2001 não foi, porém, o primeiro dia da nova ordem internacional, mas sim uma manifestação de extrema gravidade dos desafios e problemas do pós-guerra fria. O que pode fazer dele um dia que mudará o mundo é a natureza da resposta dos Estados Unidos (e da comunidade internacional) aos atentados de Nova Iorque e Washington. Essa, sim, pode moldar de forma decisiva a ordem internacional. Mas pode também contribuir para agravar os factores de desordem internacional e de anarquia, nomeadamente numa das regiões mais sensíveis do globo, o Médio Oriente e o Golfo. Tudo dependerá da natureza e dos objectivos políticos da resposta, e por isso a intervenção militar que se avizinha encerra todos os perigos e também alguma esperança.Se este foi de longe o mais grave e sangrento atentado terrorista em território americano, não deixa de tipificar, num cúmulo de horror, os desafios que se colocam à segurança internacional e pôr simultaneamente em trágica evidência o facto de que vivemos ainda num mundo sem ordem. Finda a ordem bipolar, a predominância das potências democráticas no sistema internacional criou fundadas - mas cedo goradas - esperanças de que o mundo se regeria de então em diante por uma ordem multilateral. A solene promessa de transformar as Nações Unidas, sob a égide e com particular responsabilização do Conselho de Segurança, no pilar da nova ordem internacional - feita por George Bush pai na altura da guerra do Golfo - foi-se desfazendo aos poucos. A comunidade internacional, órfã da liderança da superpotência democrática, tolerou o intolerável, como o genocídio no Ruanda, à medida que crescia a onda de isolacionismo e unilateralismo, de aversão pelas Nações Unidas, em que cabe a maior responsabilidade ao Congresso americano, de maioria republicana, e diminuía a margem de manobra do Presidente Clinton. A convicção de que o mundo necessitava de ser regulado, de que a paz sem ordem era necessariamente precária, foi-se no entanto impondo em muitos países, e inclusive entre muitos norte-americanos. E assistiu-se então a um impulso humanitário generalizado que permitiu, sob liderança ou com forte empenho americano, travar, na Europa, a limpeza étnica na Bósnia e no Kosovo e, no seu seguimento, como por milagre, travar o terror em Timor.Foram lançadas também grandes iniciativas, com sorte variada, destinadas a fundar uma ordem internacional multilateral - desde a proibição das minas antipessoal, à tentativa de instaurar um tribunal internacional para julgar crimes contra a humanidade (TPI). Em todas essas iniciativas, destinadas a criar e fazer cumprir normas comummente aceites, que fossem constrangendo prevaricadores, proliferantes, ditadores, os Estados Unidos foram no mínimo recalcitrantes, por pressão do anterior Congresso ou do actual Presidente. Dado o predomínio mundial de que gozam em todas as frentes, o empenho dos Estados Unidos é indispensável para que uma ordem mundial multilateral venha um dia a imperar, e a sua falta fragiliza todas as iniciativas nesse sentido. E se não existe por ora ordem multilateral, também não existe ordem hegemónica, benigna ou não, dos Estados Unidos. A ordem tem sido construída, e ocasionalmente imposta, apenas ou quase exclusivamente na Europa.O Norte de África, o Médio Oriente e o Golfo são regiões particularmente afectadas pela falta de iniciativa e de ordem internacional. É verdade que Clinton tentou em vão resolver o conflito do Médio Oriente. Com Bush, o deliberado alheamento americano deixou o conflito entre Israel e a Palestina escalar perigosamente, fazendo assim pender a balança, como sempre acontece, para o lado do mais forte. E que dizer da Argélia, onde a orgia de violência fez perto de cem mil mortos, e do lento genocídio em curso no Sudão, em que a cifra macabra se aproxima dos dois milhões? Ou de outros problemas graves que permanecem por resolver, seja no Iraque - onde americanos e ingleses prolongam por mais de uma década uma política de sanções e retaliações que, sem beliscar o regime de Saddam Hussein, causa privação e sofrimento à população -, ou no Afeganistão, onde se instalou um regime teocrático que comete as maiores barbaridades sem uma oposição internacional séria e determinada? É evidente que a situação, que se vive nesta região, de conflitualidade sem saída, de imensa miséria humana e de prolongado sofrimento de populações inteiras, agravado pelo facto de a maioria dos regimes serem autoritários e num caso ou noutro integristas, facilitou o desenvolvimento de correntes extremistas, com ou sem apoio popular, cujo recurso a actos de terror fez já dezenas de milhares de vítimas no Norte de África e no Médio Oriente, actos de terror que se verificaram também em menor escala na Europa e atingiram agora, em proporções nunca vistas, os Estados Unidos. A justa resposta aos atentados de Nova Iorque e Washington depara-se com a dificuldade de definir com precisão o inimigo e fazer para isso uma série de complexas distinções. A grande distinção a operar é evidentemente entre grupos terroristas e mundo árabe e islâmico, mas outras há: distinção entre islamismo político mais ou menos radical e grupos terroristas como o de Ossama Bin Laden; distinção entre movimentos de oposição reclamando-se ou não do islamismo político, que legitimamente se opõem a governos autoritários, e grupos totalitários que recorrem ao terror contra as populações civis. O que os movimentos islamistas radicais têm de característico é uma mesma ideologia política, o totalitarismo identitário, que considera os valores universais e a cultura ocidental uma terrível ameaça à preservação da civilização de que se reclamam, que há que extirpar por todos os meios. Este extremismo identitário é em tudo semelhante ao de Milosevic, por exemplo, e aparentado com a extrema direita europeia, que vê nos imigrantes uma ameaça à identidade. Se os Estados Unidos impusessem aos aliados, designadamente à Europa, uma aliança do "Ocidente" contra os outros, especialmente o mundo islâmico, confortariam plenamente os autores dos atentados terroristas, para quem de facto o Ocidente é o inimigo cuja demoníaca influência querem erradicar da face da Terra.Nenhuma religião, nenhuma nação, nenhuma comunidade humana, pode ser confundida com o grupo ou a constelação de grupos que espalharam o terror na América e no mundo, por mais que dela se reclamem. É abusiva e contrária a referência que fazem ao Islão, repudiada aliás pela esmagadora maioria dos muçulmanos. No entanto, a diversidade entre os grupos é enorme, tanto no que respeita aos métodos pacíficos ou violentos, como ao grau de ligação com a população e aos objectivos políticos. As correntes islamistas radicais têm, regra geral, por principal inimigo os regimes da maioria dos países árabes, considerados apóstatas e servis perante o Ocidente, e as suas vítimas mais numerosas, como acontece na Argélia, são civis dos seus próprios países. Grupos como o de Bin Laden, por seu lado, não têm objectivos políticos precisos para além do combate contra os Estados Unidos. Estes grupos, claramente minoritários, formados na guerra do Afeganistão contra a União Soviética, fizeram do terrorismo a sua única arma e, se gozam de alguma aura mítica, têm fracas raízes populares. Se é evidentemente necessário envolver países árabes e islâmicos na resposta à tragédia americana, não é menos necessário evitar legitimar uma política de autoritarismo e repressão contra todas as forças, inclusive as democráticas, que contestam a legitimidade de muitos regimes nesses países. E não é menos preciso impedir a continuação da política de Ariel Sharon, e condenar liminarmente a sua tentativa para utilizar a indignação mundial contra o terrorismo para confundir Yasser Arafat com Bin Laden e destruir assim todas as possibilidades de criação de um Estado palestino viável, condição indispensável para que o Estado de Israel tenha paz e segurança. Em caso algum pode a coligação que os americanos estão a constituir contra o terrorismo servir de alibi a novos abusos dos direitos humanos pelas tropas russas na Tchetchénia, por exemplo, em nome da luta contra o islamismo radical.A resposta ao hediondo crime de Nova Iorque e Washington coloca-nos perante duas alternativas: ainda maior anarquia ou, finalmente, uma nova ordem internacional. Na primeira hipótese, os Estados Unidos, sem fazer as distinções referidas, assumem de uma forma que não deixa margem de manobra aos seus aliados, inclusive europeus, a liderança de uma retaliação anti-terrorista concebida mais como um acto de reparação de que um acto de justiça internacional e de início de um longo processo para erradicar o terrorismo, sem se empenharem seriamente, em paralelo, na resolução dos graves problemas do Médio Oriente. Assim se reforçaria o isolacionismo ou a crença desajustada de que, numa ordem hegemónica, os Estados Unidos estariam ao abrigo das consequências dos problemas mundiais. Se assim for, o Mundo continuará sem ordem por muito tempo e da acção militar resultará o reforço do sentimento antiamericano e um aumento da base social de apoio dos movimentos totalitários e mesmo dos grupos terroristas. A outra alternativa é combinar a firmeza inteligente contra o terrorismo, que pode incluir acções militares, no apoio sério à luta armada contra os Taliban, com medidas políticas (apoio às reformas democráticas, designadamente), económicas (maior abertura dos mercados) e sociais (combate à pobreza, maior abertura à imigração) para debelar os graves problemas da região em consequência dos quais se gera a insegurança, e fazê-lo numa perspectiva que permita um reforço do multilateralismo. Esta orientação significa um empenhamento em conjunto com a Europa, e não a solo, dos Estados Unidos na resolução da crise israelo-palestina, "internacionalizando" decididamente a resolução do conflito. Significa também considerar que todas as vítimas do terror, americanas, argelinas, israelitas, palestinas, ou quaisquer outras, merecem a mesma solidariedade. Apesar do discurso que Colin Powell tem vindo a fazer neste sentido, esta não é, infelizmente, a mais provável resposta à tragédia de Nova Iorque, a mais cosmopolita cidade do Mundo, mas é certamente a que as suas vítimas, de todas as nacionalidades e crenças, merecem como homenagem.Director do Instituto de Estados Estratégicos e Internacionais (IEEI)

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