Nova luz sobre ritos funerários no Neolítico

Uma equipa de arqueologia da Universidade de Lisboa pôs a descoberto um enterramento praticamente intacto, que vem fornecer novos dados sobre os rituais fúnebres no Alentejo durante o III Milénio a.C. A descoberta ocorreu durante uma intervenção de três meses numa das três antas da Herdade de Santa Margarida, a quatro quilómetros de S. Pedro do Corval, Reguengos de Monsaraz. O megálito, designado por Anta 3, encontrava-se sob pedras de granito cobrindo terra consolidada, e tinha à superfície um amontoado de esteios arrancados e partidos, empilhados em cima daquilo que teria sido a câmara. Victor S. Gonçalves, que dirigiu a intervenção, explica que a sua equipa, ao escavar o corredor do monumento, constatou que parte de um dos esteios tinha caído, selando enterramentos que estavam por baixo. Quando removeram essas pedras, encontraram uma fase inicial de utilização do corredor e, "pelo menos dois enterramentos" em que os ossos estavam já muito destruídos, mas havia artefactos, como vasos inteiros. "Na câmara, encontrámos de início uma carapaça enorme de pedras, pelo que nos convencemos - e mais tarde confirmámos - que num dado momento da Pré-História alguém a teria reutilizado", diz Gonçalves. Quando essa camada de pedras foi removida, os arqueólogos depararam com vários ossos humanos dispersos, o que é muito raro em monumentos megalíticos no Alentejo, e, sobretudo, com dois enterramentos quase intactos. Um dos esqueletos, achado junto ao esteio de cabeceira, tinha os ossos longos das pernas em perfeita conexão anatómica, apresentando ainda partes da caixa toráxica muito desfeitas e o crânio pulverizado em pequenos fragmentos, associado a materiais arqueológicos como pontas de seta e cerâmica.O outro enterramento encontrava-se bem preservado, faltando-lhe apenas um pouco da caixa toráxica e achando-se o resto em conexão anatómica, com o crânio repousando sobre a mão esquerda. Estava acompanhado por um conjunto de oferendas votivas, como um vaso inteiro e placas de xisto. Porém, para Victor S. Gonçalves, "o mais interessante é que debaixo desse esqueleto humano estava também o que restava do esqueleto de um cão, um grande animal com cerca de 47 quilos de peso e menos de um ano de idade, que teria sido, eventualmente, sacrificado para ser colocado junto da pessoa ali enterrada". A julgar pelo desgaste dos dentes, o arqueólogo acredita tratar-se de um adulto idoso."É um enterramento extraordinário, não só por esta associação votiva como por outros rituais de enterramento que encontrámos", acrescenta com entusiasmo Victor Gonçalves, precisando que foram detectados fragmentos de quartzo branco colocados sobre o esqueleto, um deles encaixado entre o maxilar e a mandíbula. Para o arqueólogo, o achado representa "um avanço enorme" no conhecimento do megalitismo alentejano. Nas antas alentejanas é comum encontrar materiais como a pedra polida, a pedra lascada ou as placas de xisto, mas nunca os rituais da morte, devido ao desaparecimento dos esqueletos.Descendo abaixo destes dois grandes enterramentos principais, bem preservados, os investigadores encontraram ainda áreas com bastantes ossos humanos, como restos de crânios com dentes, sempre importantes para se compreender a dieta dos inumados. Na fase final da intervenção, em inícios deste mês, foram encontrados materiais arqueológicos ligeiramente mais antigos, que poderão corresponder à construção do monumento, já no IV milénio, entre 3500 e 3000 a.C..Quanto aos dois grandes enterramentos, propriamente ditos, Victor S. Gonçalves acredita datarem de 3000 a 2500 a.C. De qualquer maneira, as datações de rádio-carbono vão ser possibilitadas, dado existirem os ossos humanos, os ossos do cão e o carvão do fogo ritual que estava ao lado, três meios de datação que "vão confirmar-se uns aos outros". A grande quantidade de carvão espalhado pelo monumento vai ainda permitir identificar espécies vegetais. A intervenção nas três antas da Herdade de Santa Margarida integra-se num projecto a decorrer desde 1985 em Reguengos de Monsaraz, onde vem trabalhando a equipa da Unidade de Arqueologia do Centro de Arqueologia e História da Universidade de Lisboa, dirigida por Victor S. Gonçalves."O que nos interessa", diz Gonçalves, "é a evolução das sociedades camponesas, tanto nos seus passos de vida como nos seus passos de morte", bem como "um conjunto fascinante de fenómenos que se passam por volta de 3000 a.C.". É por essa altura que se verifica a chamada "revolução dos produtos secundários", assistindo-se a profundas transformações com o início da mineração do cobre, o aparecimento da exploração intensiva da terra, a utilização de novas tecnologias e a "habituação orgânica ao leite". Para Gonçalves, trata-se de "um momento absolutamente fascinante" no Alentejo e noutras regiões de Portugal, onde as transformações foram de par com violentos conflitos entre comunidades com "tipos muito diferenciados de economia".

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