O homem que queria escrever
Filho de José Maria Pereira Sobrinho (um ourives com gosto pelo teatro) e de Maria da Conceição Reis Pereira (mulher sensível e nervosa, a quem Régio atribuía alguma responsabilidade na sua vocação literária), José Régio (pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira) nasceu em Vila do Conde a 17 de Setembro de 1901. Aí frequentou a escola primária e os anos iniciais do liceu, que terminaria no Porto, juntamente com o seu irmão Júlio (1902-1983), também poeta com o nome de Saul Dias e um dos mais singulares artistas plásticos da sua geração. Para lá de tudo o que terá germinado ao longo da adolescência e é sempre difícil de avaliar - convívio com colegas, crises religiosas, leituras da biblioteca familiar -, pode dizer-se que o período crucial da sua vida decorre a partir de 1920 em Coimbra, onde frequenta o curso de Filologia Românica, concluído em 1925 com uma tese de licenciatura que mais tarde se transformará na "Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa" (1941).Leitor de Camilo, Flaubert, Tolstoi, Proust ou sobretudo Dostoievski, José Régio aproveitou os decisivos anos de Coimbra para uma formação cultural apoiada numa vasta curiosidade literária e humana, que o levou a descobrir os autores do "Orpheu" e a conviver de perto com João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Afonso Duarte, Casais Monteiro, Edmundo de Bettencourt, Torga, António de Sousa, etc. Publicando os "Poemas de Deus e do Diabo" em 1925 - livro logo saudado por alguns críticos - Régio lançar-se-á dois anos depois (com Branquinho da Fonseca e Gaspar Simões) na aventura da "Presença", que até 1940 editará um total de 56 números.Sobre a importância dessa revista para o chamado "segundo modernismo" já muito foi dito, e de perspectivas diferentes, por grandes leitores como Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira ou Eduardo Lourenço, entre outros. Para Eduardo Prado Coelho, ela acabou por ter uma "função cicatrizante" em relação à ruptura modernista do "Orpheu". Quanto às suas bases estéticas, assentavam no critério da originalidade individual, entendido em função das personalidades dos autores e do que pudessem trazer de novo ou interessante à literatura. Como escreveu Régio no célebre texto que abria o primeiro número, "literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida (...). Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura que ele produza será superior".Embora mantendo intensa actividade na "Presença" e noutras revistas e jornais, José Régio seguiu a carreira do ensino secundário, passando fugazmente pelo Porto (1928/29) e sendo colocado no Liceu de Portalegre a partir de 1930, onde permaneceu mais de 30 anos, até se reformar em 1962. Nessa cidade a sua existência fluiu, solitária e tranquila, entre o liceu, os cafés - Régio gostava de ir ao café - e a casa (hoje museu) onde foi acumulando uma enorme colecção de peças de arte sacra (sobretudo Cristos). Cultivando a prática epistolar, mas decidido a "mandar passear esse mundanismo-camaradismo-literatice para que não nasci", Régio não quis casar nem constituir família, tendo justificado essa opção na resposta a um questionário que um dia lhe foi enviado por Jorge de Sena: "Penso que o matrimónio ainda será o estado mais normal do homem (Digo estado normal e não natural. Parece-me que, naturalmente, o homem é polígamo). Ter filhos - também me parece o mais normal. Acho que vale a pena tê-los, apesar das preocupações que daí possam advir. Se eu resolvi muito novo não me casar (...), foi por me parecer que me dedicaria por demais à mulher, aos filhos, à casa - e isso prejudicaria a obra gigantesca que eu me propunha realizar (A que distância fica a gente do que na adolescência sonha!)".Alternando entre Portalegre e longos regressos a Vila do Conde (hoje sede do Centro de Estudos Regianos), José Régio dedicou os últimos tempos da sua vida a uma espécie de balanço interior, extravasado nas páginas da "Confissão dum Homem Religioso", livro que retrata a sua busca espiritual mas que deixou incompleto, ao ser surpreendido por um enfarte do miocárdio em Outubro de 1969, falecendo dois meses depois. Considerado pelo Padre Manuel Antunes "talvez a figura literária mais completa do século XX", admirado por uns, depreciado por outros, mas sempre lido e estudado por muitos escritores e críticos (de que o principal é hoje Eugénio Lisboa), José Régio continua a representar o paradigma do escritor atormentado com os seus fantasmas e, acima de tudo, as mil e uma contradições do enigma humano que se condensa na essência disso a que chamamos "poesia".