Amélie Nothomb: A Prestidigitadora
Amélie Nothomb conseguiu com "Hygiène de l'Assassin" o prodígio de publicar um primeiro livro de excepção, inaugurando uma nova maneira de estar nas letras francesas. Excelência que retoma agora com "Cosmétique de l'Ennemi", uma espécie de regresso ao lugar do crime, tal como um pintor retoma a tela que realmente importa.
Chegou às livrarias francesas e belgas no passado dia 23 de Agosto. Chama-se "Cosmétique de l'Ennemi", o décimo título que Amélie Nothomb publica com a chancela da editora Albin Michel - a mesma editora que recebeu no início dos anos noventa o manuscrito de "Hygiène de l'Assassin" pelo correio. Editado em 1992, "Hygiène de l'Assassin" (publicado em Portugal pela Editorial Presença) narra os derradeiros meses de vida de um octagenário Nobel da Literatura chamado Prétextat Tach. Perseguido por uma corte de jornalistas-homens histéricos e incompetentes que não leram os seus livros, Prétextat Tach despreza-os e brutaliza-os. Confrontado com Nina, a jornalista que lhe vai entrar pela cabeça e pelo coração adentro, destemida e, sobretudo, determinada em desvendar o criminoso e o farsante contidos no laureado escritor, Tach concede-lhe uma entrevista e perde o jogo. De como "a literatura, a verdadeira, é feita de lágrimas e de sangue"."Hygiène de l'Assassin" retirou Amélie Nothomb do anonimato e inaugurou uma nova maneira de estar nas letras francesas. Uma maneira de viver a escrita que é só dela, Amélie. Uma maneira fria como a vingança servida numa bandeja. Despojada, expressiva, impressionantemente honesta, virtuosa no que vai buscar ao universo do fantástico. A verdadeira contemporaneidade, em suma. Nothomb conseguiu com "Hygiène de l'Assassin" o prodígio de publicar um primeiro livro absolutamente de excepção. Excelência que porventura retoma agora com "Cosmétique de l'Ennemi", uma espécie de regresso ao lugar do crime, tal como um pintor retoma a tela que realmente importa.Pelo meio ficaram oito títulos, um por ano, e entre os quais se conta "Stupeur et Tremblements" (1999, "Temor e Tremor", editado em Portugal pela Bizâncio, mais de quatrocentos e cinquenta mil exemplares vendidos até à data e uma carreira em versão 'de bolso' ainda por contabilizar), galardoado com o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Contra o "establishment" e o "status quo" perpetuado pela generalidade dos produtores de literatura - escritores, editores, críticos, psicanalistas das academias - Amélie Nothomb rema também contra os cânones preceituais da grande abstracção que, de facto, é a literatura, figura incessantemente fustigada por intempéries patéticas de significantes obsoletos.Olhada com escamoteada desconfiança por parte de muitos escritores e críticos literários, Amélie Nothomb é um caso sério no panorama literário mundial. Não se trata aqui apenas de sucesso, porque embora tendo escrito o primeiro "best-seller" aos vinte e quatro anos e sendo venerada pelo grosso da juventude que lê em francês (o que faz dela um ídolo, equiparado em fama e ascendente aos actores, cantores ou jogadores de futebol), não há nada de ligeiro na sua escrita. Vítima confessa da doença dos dedos que não conseguem deixar de disparar palavras, Nothomb é indiferentemente loquaz a escrever na primeira, na terceira pessoas ou em discurso directo, em monólogos, relatos ou diálogos que se pautam sempre por um domínio raro (e inovador) da linguagem literária, à qual ela associa um superior sentido de humor.Questionada quanto aos eventuais excessos autobiográficos contidos em todos os seus livros, Nothomb não se limita a assumir com naturalidade a génese óbvia e comum a toda a criação artística, indignando-se com o pensamento insidioso dos defensores do que não existe (a ficção pura) e insurgindo-se contra os dedos acusadores incapazes de compreender o protagonismo da voz interior dos criadores. Acusadores e incapazes de compreender que, para alcançar a verdade, não basta copiar a vida. Incapazes de compreender a coragem por detrás do jogo da verdade que constitui o acto de mostrar aos outros como é estar dentro de nós-mesmos, levando-os para esse espaço, acto de bravura simultaneamente insustentável e prodigioso.Filha de um diplomata belga em viagem pelo Oriente, Amélie Nothomb relatou em "Le Sabotage Amoureux" (1993) os jogos infantis que ela-própria terá vivido no bairro das embaixadas em Pequim. A China comunista explicada pelo olhar de uma criança de sete anos, num país com pelo menos tantas ventoinhas quantas os habitantes, onde as bicicletas são em bom rigor cavalos e onde "uma vez passada a puberdade, tudo o mais não passa de um epílogo".Em "Temor e Tremor", Nothomb dá-nos conta da sua primeira experiência profissional no seio de uma grande empresa no Japão, rompendo de vez com o princípio da realidade. "O senhor Haneda era o superior do senhor Omochi, que era o superior do senhor Saito, que era o superior da menina Mori, que era a minha superior. E eu, eu não era a superior de ninguém."Há em Amélie Nothomb uma surpreendente simplicidade, embora não haja nada de banal nesta maneira de ser simples. Nothomb é teinómana - bebe muito chá muito forte. E foi seguramente a beber chá formidavelmente forte que escreveu o agora editado "Cosmétique de l'Ennemi". Tenho a íntima convicção de que é o chá que lhe provoca a doença dos dedos que não conseguem parar de disparar as palavras. Há quem beba whisky, quem fume cannabis, quem fume mais cigarros do que os pregos precisos para o caixão. Amélie Nothomb bebe chá, voilà.Terá também sido a beber muito chá muito forte que Nothomb escreveu "Métaphysique des Tubes" ( 2000, "Metafísica dos Tubos", editado em Portugal pela Bizâncio, mais de duzentos e cinquenta mil exemplares vendidos em França até à data), um relato na primeira pessoa dos primeiros três anos de vida de Amélie e da consciência precoce de uma firme recusa de viver à margem do centro do universo, num país (o Japão) cuja cultura dá às crianças um estatuto tanto mais divino quanto mais pequenas são."Metafísica dos Tubos", verdadeira terapia regressiva tornada literatura, inspirou-se pois na vivência da autora em Shukugawa, uma pequena vila perto de Osaka para onde o pai de Nothomb foi enviado na segunda metade dos anos 60 para presidir aos destinos do consulado belga. "No princípio, era o nada" é a primeira frase do livro. Nada a não ser Deus, o Todo-Poderoso na forma de uma criança, essencialmente preocupada em deglutir e digerir. Um tubo. O confronto com a existência dos outros leva o tubo-Deus a uma tentativa de suicídio num laguinho com carpas e a qual os adultos se apressariam a entender como um mero acidente. É caso para dizer bem-hajam. "Depois, não se passou mais nada" é a última frase deste livro que, para muitos, representou uma viragem na obra de Nothomb, reconciliando muitos dos seus primeiros leitores com o incontornável talento desta escritora cujas confidências (a ingestão de litros de chá e fruta podre, a escrita produzida a caneta e papel - Amélie não usa computadores) e figurinos (os grandes chapéus, as botas de caminhada) faziam dela uma espécie de "Quasimodo do meio literário" francês.Ei-la portanto chegada ao décimo título, um diálogo que começa no princípio do livro e que só acaba no fim. "Cosmétique de l'Ennemi" é uma brilhante partida de esgrima entre o bem e o mal, personificados nas personagens Jérôme Angust e Textor Textel. "Foi num hall de um aeroporto que tudo começou. Ele sabia que seriaele. A vítima perfeita. O culpado escolhido de antemão. Bastou-lhefalar. E esperar que a armadilha se voltasse a fechar. Foi num hall deum aeroporto que tudo acabou."Angust - tal como o nome indica de forma muito clara - é um homem devorado pela angústia. Textor é um produto da trama do próprio texto e do interior de Angust. Angust é o modelo acabado do homem de negócios carcomido pelo stress e pela culpa, sem tempo para nada, muito menos para o exercício da introspecção. Textor é a sua outra voz - a que ele em vão tenta calar, no duelo verbal de "Cosmétique de l'Enneni", duelo que deve mais a Platão do que uma primeira abordagem pode revelar.Textor é, claro está, o inimigo. "As provas da existência do inimigo interior são muitas e todas importantes e as do seu poder são esmagadoras. Creio no inimigo porque, todos os dias e todas as noites, o encontro no meu caminho. O inimigo é aquele que, a partir do interior, destrói o que lhe apraz. É aquele que nos mostra a decrepitude contida em cada realidade. É aquele que expõe as nossas fraquezas, bem como as dos nossos amigos. É aquele que, num dia perfeito, encontra uma excelente razão para nos sentirmos torturados. É aquele que nos repugna de nós-mesmos. É aquele que, quando avistamos o rosto celestial de uma desconhecida, nos revela a morte contida em tamanha beleza." Assim mesmo, sem tirar nem pôr, pese embora a tradução livre. Para acabar de vez com o romantismo, com a exaltação do belo a que, mais ou menos assumidamente, quase toda a literatura se dedica. Sem quaisquer artifícios de linguagem, senhoras e senhores, eis um olhar impiedoso sobre a condição humana.