A origem da vida
O que podemos extrair da escrita de Jorge de Sousa Braga, de regresso com 24 poemas em torno das mulheres e das suas marcas sexuais, é uma lição de amor que se expande e alarga à espécie humana.
Basta percorrer a célebre "Antologia de Poesia Erótica e Satírica" feita por Natália Correia nos anos 60 para reconhecer a importância dessa tradição em Portugal, cultivada ainda não há muito tempo por Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, etc. Nas décadas mais recentes deu-se mesmo a eclosão de um lirismo explicitamente homossexual, dantes assumido por nomes como António Botto ou Cesariny e hoje completamente integrado no nosso "mainstream" poético. Não é esse o caso de Jorge de Sousa Braga (n.1957): aparecido há vinte anos com uns livrinhos cheios de frescura e imaginação, cujos títulos ficaram na memória - "De Manhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cú" e "Plano para Salvar Veneza" -, este poeta tem sabido comunicar muito bem um olhar crítico e ao mesmo tempo enternecido sobre o mundo, graças a uma subtil ironia e a um sentido de humor pouco frequentes num país onde a poesia ainda é geralmente encarada como uma coisa muito séria, um exercício solene e sisudo. Depois de reunir toda a sua escrita em "O Poeta Nu" (Fenda, 1991) e de ter publicado "Fogo sobre Fogo" (Fenda, 1998), Jorge de Sousa Braga ressurge agora com este ciclo de 24 poemas que giram em torno da mulher (ou das mulheres) e daquilo que define mais especificamente o género feminino, as suas marcas sexuais, neste caso centradas nos órgãos genitais, que aqui funcionam como pólo de atracção fundamental e servem de motivo a alguns poemas - repare-se, por exemplo, em "Cinco Visões de uma Vulva" (pp.28/29) ou na "Ladainha" que enumera quinze nomes atribuídos ao sexo da mulher e não resisto a citar na íntegra: "Concha perfumada / Pórtico real / Princesa das flores / Porta misteriosa / Pérola vermelha / Coração de peónia / Pegada de gazela / Pórtico de jade / Palácio de púrpura / Delta negro / Pote de mel / Botão de lótus / Gruta de canela / Porta alada / Flor da lua // Rogai por nós" (p.30). Apesar destas imagens remeterem para um universo metafórico derivado da poesia oriental e por isso aparentemente afastado da realidade quotidiana, o conjunto do livro orienta-se noutro sentido, que faz contrastar uma atitude lírica e simultaneamente uma atenção à consistência material do sexo e às suas leis biológicas, a que os seres humanos obedecem - veja-se o texto intitulado precisamente "A Ferida Aberta": "Há uma ferida aberta que / Sangra ciclicamente um // Cíclame que floresce às / Horas mais inapropriadas // Quem me dera poder guardar / Todos esses milhões de flores // Que acabam diariamente em / Pensos higiénicos nos contentores" (p.13). O modo como estes versos nos falam dos ciclos menstruais ilustra bem o referido contraste entre um certo erotismo lírico (ou lirismo erótico, se preferirem) e, por outro lado, uma descida à matéria orgânica de que são formados os nossos corpos, por vezes retratados em toda a sua degradação, provocada pela doença. Enquanto no primeiro caso encontramos textos claramente eróticos, aludindo, por exemplo, ao acto sexual ou às respectivas posições - "Um homem nu uma mulher nua / A conjunção do sol e da lua" (p.31) - e no pólo oposto deparamos com a crueza de algumas situações clínicas da área da ginecologia e da obstetrícia - por exemplo "Laparotomia" (p.17) ou "O Anencéfalo" (p.19) -, poemas há que conseguem reunir essas duas componentes e condensam o tom mais característico deste livro singular - é o que se passa num texto sobre uma mulher vítima de cancro da mama: "Recusara a mastectomia e agora / Os seus seios eram uma massa informe // Cheia de locas de pus. A custo / se adivinhavam os mamilos // Aonde ainda não há muito tempo / Pousavam uns lábios húmidos" (p.18). O que podemos extrair da escrita de Jorge de Sousa Braga acaba por corresponder, afinal, a uma lição de amor - um amor que, não equivalendo a qualquer itinerário libertino nem a uma simples declaração sentimental, se expande e alarga a todo o conjunto da espécie humana, desdobrada nos múltiplos gestos capazes de exprimir não apenas a força da atracção sexual, mas todo o mistério contido nessa pulsão, sobretudo por ser a partir daí que começa o percurso de cada vida humana. E não será por acaso que o poema final ("Diário de Bordo") acompanha as sensações de um embrião (depois tornado feto) durante os nove meses em que vive no útero materno, até ser enfim expulso e ver a luz do dia: "Mãe / Hoje abriu-se uma janela pela primeira vez / (...) // Mãe / Estou a ficar velho / Disseram-me que já deixei de ser embrião / (...) // Mãe / Porque é que o meu coração bate tão acelerado? / (...) // Mãe / Apetecia-me chorar / Mas é difícil chorar assim debaixo de água // (...) // Mãe / O que é que eu fiz / Para me expulsares desta maneira?" (pp.34/38).