Nós Macacos, Eles Homens

Um jornalista acertou em cheio quando perguntou a Tim Burton se o exército de símios no seu filme não tinha sido inspirado nos macacos voadores de "O Feiticeiro de Oz". Tim Burton recordava-se bem dessa cena, mas logo generalizou o seu pavor pelos macacos todos, e chimpanzés em particular, que considera imprevisíveis e maldosos: "Há quem os queira como animais de estimação, mas eu preferia ter em casa um psicopata."

Em "O Feiticeiro de Oz", o pesadelo é um bilhete de ida e volta com direito a regressar ao Kansas da infância de Dorothy. No entanto, o pior pesadelo é aquele do qual não podemos regressar e acordar. "O Planeta dos Macacos", nesse aspecto, é talvez a fantasia mais perturbadora de todas as ficções de antecipação alguma vez escritas. Tim Burton, que sempre gostou de realizar sonhos maus, mais tarde ou mais cedo teria de mergulhar no pior de todos.

Inversão da tragédia solitária de King Kong, "Planeta dos Macacos" é um desopilante delírio de solidão da consciência humana. "1984", de George Orwell, imagina uma sociedade que destroça os indivíduos, e "As Crónicas Marcianas", de Ray Bradbury, sugere uma humanidade desprovida da Terra-Mãe. Mas como é que o último dos homens inteligentes pode suportar essa mesma Terra quando os seus semelhantes não têm linguagem nem raciocínio e apenas podem comunicar com macacos? Darwin foi ridicularizado no século XIX por encontrar macacos nos nossos antepassados. Ao publicar, em 1963, "Planeta dos Macacos", o romancista francês Pierre Boule propôs-nos um futuro ainda mais arrepiante.

Ainda é exibido na televisão um anúncio que mostra um chimpanzé a executar uma tarefa que a maioria dos cidadãos, humanos, teimam em não aprender: separar o lixo em categorias diferentes. A mensagem é clara: se aquilo que nos distingue dos outros animais é a inteligência, por que é que não sabemos usá-la nos seus mais diversos aspectos?

Damn you all!

Quando estreou nos Estados Unidos, em 1968, o filme "Planeta dos Macacos", de Franklin J. Schaffner, ganhou uma carga alegórica tão perturbadora ao ponto do fascínio que logo exerceu sobre o público dever menos à fantasia simiesca do que ao receio dos nossos piores pesadelos virem, de facto, a concretizar-se.

Num período de conflitos raciais, de crimes políticos, de ameaças nucleares adjacentes à guerra fria e de uma geração de jovens americanos sacrificados, sem perceberem por quê, nas florestas vietnamitas, a mensagem era simples: será que todo o progresso acumulado de civilizações e civilizações apenas serve para encurralar a condição humana numa estupidez autodestruidora?

"Damn you! Damn you all to hell" ("Malditos sejam todos no Inferno"), gritava o astronauta Taylor (Charlton Heston) no final, ao descobrir que o "planeta dos macacos" era também o seu planeta Terra, num futuro pós-nuclear em que a Estátua da Liberdade jazia soterrada à beira do mar.

A perturbação causada por macacos a governarem o mundo foi suficiente para obrigar a uma sequela, depois a outra e mais outra ainda. Afinal, poderia haver esperança nesse imprevisto cenário de servidão humana?

"Beneath the Planet of the Apes" (Ted Post, 1970) confronta-nos com uma civilização subterrânea de humanos mutantes. Depois de os seus antepassados já terem feito despoletar a bomba, eles estão prontos a reincidir no conflito nuclear para destruir a soberania símia. Como resultado, em "Escape From the Planet of the Apes" (Don Taylor, 1971), a Terra torna-se inabitável e os "macaconautas" cirandam pelo espaço-tempo, o que lhes permite regredir ao passado, quando a Terra ainda era dominada pelos homens. Cornelius e Zira, o casal de macaconautas, tornam-se celebridades, mas são vítimas de uma conspiração presidencial, amedrontada com o cenário que aguarda a humanidade no futuro.

"Conquest of the Planet of the Apes" (J. Lee Thompson, 1972) reconduz, no entanto, os macacos ao seu destino. César, o filho dos macaconautas Cornelius e Zira, é criado num circo e acaba por liderar a libertação dos macacos. Finalmente, em "Battle of the Planet of Apes" (J. Lee Thompson, 1973), já com a macacada no poder, surge uma espécie de Hitler gorila, pouco inteligente e energúmeno, que defende o extermínio da raça inferior, a dos homens.

Com desenlaces tão terrivelmente negativos, depressa a série foi considerada uma tragédia americana, onde a sociedade, de forma um pouco "camp" e confusa, se revia na perversão em que se tinha transformado o sonho americano.

A culpa não foi do macaco

Embora sem a mesma simbologia apocalíptica, o romance original de Pierre Boulle (que inspirou a versão de 1968 e o filme de Burton) tinha um fim igualmente assustador. Ulisses Mérou, o astronauta perdido (Taylor/Heston na primeira adaptação; Leo/Mark Wahlberg na versão de Burton), regressava ao planeta Terra para descobrir que ao viajar no espaço-tempo se tinha dado uma alteração semelhante à que ocorrera em Soror, o planeta dos macacos. Também na Terra os homens tinham entrado em entropia e regredido até à condição animal, enquanto os símios os haviam superado. A tese darwinista da "sobrevivência do mais forte" tinha resultado numa civilização de chimpanzés, gorilas e orangotangos espalhada pelo universo.

Da mesma forma que ainda existem instituições de ensino e seitas religiosas (e logo nos EUA, a mais "progressista" das nações) que rejeitam a teoria evolucionista, também nas diversas versões de "Planeta dos Macacos" a civilização símia mitifica a sua origem de forma a proteger-se de uma verdade insuportável à sua condição de seres superiores: a origem humana da sua civilização.

Os macacos de Soror, no romance de Pierre Boulle, foram ensinados pelos humanos a desenvolverem pequenas tarefas, ao ponto de aprenderem algumas palavras e até frases. Como fisicamente eram mais fortes, transformaram-se numa ameaça para os homens que, intimidados, e cada vez menos seguros, abandonavam as grandes cidades e refugiavam-se no campo, onde, isolados, foram perdendo as capacidades e a ambição de acumularem conhecimento.

A civilização símia de Soror havia erradicado da sua história oficial esta descendência. Na realidade, os macacos não tinham inventado rigorosamente nada. Na sua natureza não existia o mais pequeno vestígio de espírito criativo. Apenas tinham imitado (ou melhor, macaqueado) todas as conquistas feitas pelo empreendimento humano, razão por que, ao fim de vários milénios de história de soberania sobre os homens, se mantinham imutáveis.

Este dado permitiu às adaptações cinematográficas criar uma sociedade anacrónica, onde o domínio da ciência, de ideias liberais, de armas de fogo e de objectos de decoração sofisticados vão de par com uma organização medieval, cavalos como meio de transporte e casas embutidas nas reentrâncias das montanhas. Aliás, a propósito das suas investigações, o chimpanzé cientista Cornelius afirmava: "Com a continuação, o espírito pode encarnar-se no gesto. E deve mesmo; é o curso natural da evolução... o que eu quero encontrar é como tudo isto começou... Hoje, não me parece impossível que tenha sido por uma simples imitação na origem da nossa era."

Aquilo que Pierre Boulle sugere é que, da mesma maneira que antigas civilizações avançadas ficam reduzidas, actualmente, à miséria do terceiro mundo, também entre espécies podem ocorrer fenómenos de regressão e evolução. No entanto, a sua fé na excepção do espírito humano não lhe permitiu dar um passo em frente e sugerir formas de inteligência fora da raça humana - no limite, os macacos apenas desenvolvem mecanismos aperfeiçoados de cópia.

Outra interpretação possível é a de que a humanidade, metaforizada através da hierarquia símia, não é verdadeiramente civilizada. É, antes, paradoxalmente civilizada. Tal como os orangotangos (detentores dos mecanismos do poder), os gorilas (guerreiros servis que mantêm a ordem instituída) e os chimpanzés (mais ambiciosos e empreendedores porque ocupam o estatuto mais baixo da organização social), o mundo moderno encontra-se ainda refém do poder como ele sempre foi exercido. A evolução e o progresso são ilusórios, pois não visam a sabedoria e o conhecimento em si, mas antes manter a ordem estabelecida.

A imagem mais chocante desta tese é descrita por Boulle quando o astronauta Ulisses Mérou, depois de pousar num planeta habitado por humanos sem fala, se vê envolvido numa caçada de que eles são as presas - a cena é tão poderosa que ambas as versões cinematográficas de "O Planeta dos Macacos" procuraram filmá-la. O primeiro caçador que Ulisses vê é um gorila, e fica surpreso com "o carácter humano da expressão". Nele reconhece "a crueldade do caçador que espreita a presa e o prazer febril que lhe dá este exercício". Havia ainda um outro motivo de espanto: "Nas pupilas deste animal luzia a centelha espiritual que procurara em vão nos homens de Soror."

"Homens racionais? Homens detentores da sabedoria? Homens inspirados pelo espírito?... Não, não é possível", comenta no final do romance Phyllis, um chimpanzé-fêmea que tinha encontrado no espaço a mensagem de Ulisses, o único sobrevivente da inteligência humana. "Isso prova que em todo o lado há poetas, em todos os cantos do cosmos; e também farsantes", diz-lhe Jinn, depois de ler a mesma mensagem.

De facto, entre um poeta e um farsante não há diferenças aparentes. No caso de Pierre Boulle, a farsa que ele criou destinava-se a narrar poeticamente a fragilidade absurda da condição humana, escrevendo frases espantosas como "os gorilas tinham ar de aristocratas" ou, melhor ainda, "foram os homens que estabeleceram uma civilização tão apurada que, em muitos pontos, ó macacos!, se assemelha à vossa".

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