Série hospitalar humaniza imagem social dos médicos

"Eu sei o que isso é. Já vi no Serviço de Urgência." Foi desta forma que uma mulher, cuja mãe acabara de falecer de morte súbita, respondeu ao médico que procurava explicar-lhe o fenómeno e as possíveis causas para a perda da mãe. Sabine Chalvon, investigadora na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris - que participa no curso "Públicos, Televisão", que decorre até sexta-feira, organizado na Arrábida pela Fundação Oriente e pela Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos -, estudou o impacte da série norte-americana junto de médicos e telespectadores-pacientes em França.E descobriu que a imagem social do pessoal de saúde mudara em muitos sentidos, bem como o grau generalizado de conhecimento sobre a realidade hospitalar, as doenças e os processos médicos. Já no ano passado, um dos responsáveis de comunicação da Organização Mundial de Saúde afirmara ao PÚBLICO que 25 por cento dos inquiridos de um estudo confessavam que a sua principal fonte de informação sobre saúde eram as séries televisivas sobre urgências e hospitais.A série, que foi transmitida em Portugal pela RTP1, tornou os médicos - normalmente empoleirados, mesmo que involuntariamente, em pedestais e encerrados numa linguagem hermética - em "pessoas como nós". E o exercício da medicina e enfermagem tornou-se "um trabalho como os outros", não no sentido da banalização mas no facto de obrigar a enfrentar o mesmo tipo de situações, conflitos, angústias e alegrias. O universo hospitalar torna-se acessível, familiar.Chalvon identificou duas outras modalidades de relação dos espectadores (enquanto utentes de hospital, antes ou depois de terem visto Serviço de Urgência) com o programa televisivo: a admiração e a compaixão. Admiração porque os heróis de Serviço de Urgência são irrepreensíveis, de uma ética profissional a toda a prova. São corajosos, resistem à fadiga física e moral, têm sentido da dignidade humana e respeitam a vida. Não são infalíveis. Mas, mesmo quando se enganam, cometem erros, quando se deixam ir abaixo, as suas intenções nunca são condenáveis. Terá isto contribuído para mistificar a imagem dos médicos junto desses espectadores? Sabine Chalvon apurou precisamente o contrário nas suas pesquisas, que envolveram entrevistas a 150 pessoas durante quatro anos. Serviço de Urgência tornou os utentes dos serviços de saúde mais exigentes, preferem terapeutas menos todos-poderosos e com mais senso moral. "Enfermeiras como a Hattaway... Isso é que eu queria encontrar", disse um dos inquiridos, referindo-se a uma das personagens da série. A compaixão de que fala Chalvon deve-se ao estado lastimável da vida íntima das personagens. Não existe uma única que viva com um cônjuge e filhos. Todos têm problemas, a vida escapa-lhes das mãos; é uma coisa que inspira piedade. "Esta pobre Suzy, já era tempo de encontrar alguém que lhe servisse. Este Marc nunca conseguirá", comentava à investigadora uma das telespectadoras.Estas características, este falhanço total na "privacidade" das personagens, vieram aproximar os espectadores dos médicos, "até mesmo torná-los um pouco superiores, pois se a admiração afasta, a compaixão aproxima", diz Sabine Chalvon. É uma superioridade terna, uma espécie de paternalismo que quase abole a distância social. Mas esta intimidade conquistada na ficção - e socialmente impossível - torna-se para os telespectadores uma espécie de promessa não cumprida e a relação com a medicina permanece, no fim, como uma experiência de dominação.Como, também eles, espectadores da série, os médicos têm a sua própria maneira de a ver e Chalvon identificou-a como positiva. Os médicos foram a segunda profissão mais retratada em séries em 1999 em França. Mas a vantagem de Serviço de Urgência é que apresenta uma "descrição do mundo médico muito precisa". O pessoal de saúde identifica-se com o programa. Vê-lo com eles é interessante, afirma a socióloga. "Divertem-se a antecipar os diagnósticos, estranham certos gestos ou prescrições, comentam escolhas terapêuticas. Guardam a sua calma e sangue-frio diante de imagens terríveis mas fazem uma careta de dor quando uma enfermeira acorda brutalmente um interno de serviço." Os estudantes de Medicina servem-se da série para fazerem revisões para os seus exames. Mas a maior alteração que a série criou, segundo os médicos, é que "as pessoas aceitam melhor a espera nas urgências. Elas sabem que, quando as fazemos esperar, não é por negligência ou má vontade, mas porque temos casos prioritários", contou um dos médicos entrevistados.

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