Retrato relâmpago de Edimburgo em cinco peças
Durante uns minutos, não se percebe nada do que eles dizem, ou então só palavras soltas. Em desespero, recorre-se ao livro-programa que se vendia à entrada, procura-se à pressa a página certa e descobre-se: aquele rapaz com ar simpático vestido de segurança e o outro, à paisana e com cara de poucos amigos, estão a falar de Sartre, e de Genet (pronunciavam "Janet"). Rodeados de caixotes (o cenário é o armazém de uma fábrica), os dois actores representam, num cerrado sotaque escocês, a primeira peça de Gregory Burke. Chama-se "Gagarin Way" (podia traduzir-se "Rua Gagarin"), está a ser um dos grandes êxitos do Festival de Edimburgo deste ano e o público, que enche a bancada quase a pique da sala 1 do Traverse Theatre, sabe disso e ri-se, ri-se muito. Haverá tempo, mais tarde, para um silêncio de gelo.Burke fez uma comédia, a única maneira de, diz, escrever sobre o século XX. E pelo espectáculo encenado por John Tiffany passam anarquismos e comunismos, a Guerra de Espanha, a greve dos mineiros, a luta armada, o capitalismo globalizado; ou, se calhar, a culpa afinal é da crise da masculinidade... Claro que o espectáculo, que vai para o National Theatre de Londres, há-de ter um sucesso imenso e ser feito, indiscriminadamente, por todo o lado.Porque neste mês de festival não há muito tempo para pensar, é beber um "expresso" e seguir, que ainda há tempo de ver outra, no Traverse, nos Assembly Rooms, no Theatre Workshop, ou numa das dezenas de salas espalhadas pela cidade, onde se faz de tudo: "stand-up comedy" e Shakespeare, tragédia grega e colagens, monólogos e musicais. Por baixo desta aparência de anarquia, no entanto, esconde-se um mercado feroz, e não é difícil adivinhar quais serão as produções mais vistas e faladas (decepções e acasos à parte): num programa que mais parece a versão reduzida das páginas amarelas, são os nomes sonantes e os espaços institucionais que fazem a diferença. Isto falando apenas do Fringe Festival, a "margem" que agarrou o centro do Verão de Edimburgo - além do teatro e, em partes menores, dança, ópera e música (de que o International Festival apresenta a programação mais "seleccionada"), cabem ainda um festival de cinema e outro de livros, com estrelas como Gore Vidal e Michael Ondaatje. Não se percebe bem se este público que enche as salas (algumas...) e apanha as piadas todas é exactamente o mesmo que a todas as horas percorre apressado a Princes Street (lojas dum lado, o castelo do outro), aquela onde começa a perseguição de "Trainspotting". Não se percebe, afinal, como funciona a cidade, se quem ali passa são só turistas, actores, críticos e programadores ou gente de lá que, recolhidos os proveitos e passado o clima de excepção, regressa às brumas de Walter Scott. Voltando ao Fringe, houve principalmente "Bedbound", texto encantatório de Enda Walsh, que também encenou. A uma velocidade estonteante, um pai (espantoso Liam Carney) e uma filha (Norma Sheahnan, há pouco saída do Conservatório) contam as histórias que os confinaram à sórdida cama do título. Numa clausura beckettiana (o espectáculo começa, ironicamente, com a quarta das paredes que apertam a cama a tombar na direcção dos espectadores), este par grotesco fala sem parar: de um passado no negócio de mobílias, em Cork e Dublin - do pai -, ou de uma queda num buraco à beira-mar - da filha: "E mesmo até à cintura estava enfiada em merda. Em breve deixei de tentar apanhar ar puro e limitei-me a inspirar o ar da merda. Vomitei um bocadinho. Vomitei as garrafas de cola que tinha bebido no autocarro. Limpei a boca do vomitado com a mão coberta de merda. Cuspi a merda e comecei a subir uma escadinha para fora do buraco de cimento. E nem sequer chorei. E é essa a história do dia em que apanhei poliomielite."Pela riqueza da linguagem, pelo tipo de representação que oscila entre o "music-hall" e o expressionista, este espectáculo ganha uma densidade diferente dos outros, mais herdeiros da televisão e do teatro britânico. É o caso, por exemplo, de "Wiping My Mother's Arse", (pois, quer dizer "limpando o rabo à minha mãe"...), de Iain Heggie, "sitcom" negra em cenário amarelo, onde uma mãe idosa é roubada pelo filho e pelo antigo amante deste, agora enfermeiro do lar onde a acção se passa. Aqui, espectáculo e texto alongam-se demasiado, as personagens fogem pouco da caricatura e os actores ficam com elas.Mais difícil de classificar é o "Casanova" de David Greig e da Suspect Culture. Aqui, o lendário sedutor é um artista internacional que, viajando pela Europa, prepara uma exposição (a última) com "souvenirs" das suas mais de mil conquistas: lá está a ideia do catálogo que se encontra em Sade, e a contaminação de vida e arte faz lembrar alguns dos "argumentos" da peça "(A)tentados", de Martin Crimp, que a Assédio estreou em Portugal. O texto de Greig, no entanto, não consegue atingir a temperatura suficiente, e a encenação, com soluções limitadas, um cenário tipo Conforama e um teatro de arquitectura difícil, só desajuda.Para acabar, uma nota sobre "Tiny Dynamite", de Abi Morgan, que Vicky Featherstone encenou (ela que estreou "Falta", de Sarah Kane): há dois rapazes e uma rapariga, um texto à vez melancólico e enérgico sobre duas histórias de amor (dois tempos) que se sobrepõem, um dispositivo cénico admirável na sua simplicidade (uma plataforma quadrada feita de tábuas com um alçapão que, levantado, deixa sair da água as personagens que tinham nadado para longe), um final mágico a culminar as múltiplas histórias de acasos que se vão contando. E, depois dos aplausos, ainda há tempo para ver os técnicos que se apressam a mudar o cenário, que o festival não pára. Como canta Lou Reed, vai continuar a haver quem ache que "se calhar devia estar em Edimburgo / de kilt em Edimburgo / a fazer uma dança moderna", ou uma peça contemporânea, ou...